domingo, 30 de outubro de 2011

foto da internet


Vista cansada
Otto Lara Resende


Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se a visse pela última vez. Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. Essa idéia de olhar pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua, não admira que o Hemingway tenha acabado como acabou.

Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo de ver.


O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar.


Vê não-vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio.Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe.


De tanto ver, você não vê. Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer.Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima idéia. Em 32 anos, nunca o viu.


Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser também que ninguém desse por sua ausência. O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho.


Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.


Texto publicado no jornal “Folha de S. Paulo”, edição de 23 de fevereiro de 1992.Mais sobre Otto Lara Resende e sua obra em "
Biografias".

5 comentários:

  1. A história do porteiro que nunca foi visto me lembrou um filme que vi : "Porco espinho". Era sobre isso mesmo, a zeladora do prédio que só foi lembrada quando morreu...uma história linda, que a partir dali, voce começa a prestar mais atenção em quem está ao seu lado, principalmente nas pessoas "invisíveis"...

    Post ma ra vi lho so!!! mais uma grande lição para levarmos...

    Beijos com carinho, amiga querida e bela...
    Liz

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  2. MINHA QUERIDA ELIETE QUE LINDO TEXTO ADOREI DA MUITO QUE SE PENSAR MEDITAR SOBRE ESTE TEXTO EU COSTUMO PLHAR COM OS OLHOS DA ALMA PARA TUDO O QUE FIXO O OLHAR POR VEZES LEVANTO DURANTE A NOITE E ANDO PELA CASA VOU AO BANHEIRO AS VEZES COM OS OLHOS FIEXADOS POIS SEI O LUGAR EXATO DE CADA COISA DE ONDE DEIXEI DE ONDEE COSTUMO GUARDAR
    SEI QUE A VISÃO NOS FAZ MUITA FALTA ,POR ISTO

    P

    ROCURO VER TUDO A MINHA VOLTA COM MUITA ATENÇÃO BJS QUERIDA BOM FERIADO MARLENE

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  3. Belo e reflexivo texto, Eliete!

    Bem que poderíamos aprender a ohar com os olhos do coração, mas a correia cotidiana, muitas vezes nos impede.

    Beijos!

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  4. Olá,Eliete!!

    Tão verdadeiro!!!O hábito acaba por nos vendar a visão!É necessário paramos e refletirmos um pouco...senão muita coisa se perde na correria do dias a dia!E o autor tem razão, parece fácil, mas é muito difícil...principalmente porque temos que vencer o hábito!Mas vale muito à pena!!
    Gostei muito deste texto, complementou minhas reflexões!OBRIGADA!!
    Beijos pra ti querida!!!
    Bom começo de semana!!

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"A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu. (...) Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas... Mas não posso explicar a mim mesma." (Lewis Carroll)

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