quinta-feira, 4 de novembro de 2010


Algo em Palmas,
Tocantins, me deixava inquieta.Não era uma questão de desconforto, calor ou insegurança: meus anfitriões, gentis e atenciosos, me instalaram em um ótimo hotel e ainda "providenciaram" chuva para abrandar a temperatura.Dei-me conta da razão no terceiro trajeto de carro: a artificialidade da cidade, de arquitetura planejada, com ruas e avenidas perfeitamente alinhadas e uma profusão de esquinas em ângulo reto.Construídas de uma vez só em terreno plano, as ruas de Palmas não tinham curvas naturais que seguissem o relevo do terreno ou o contorno de riachos e encostas. Inquietante: mas por quê?Inquietude é o contrário de tranquilidade -esta, por sua vez, é um estado interno do cérebro, caracterizado por calma e autorreflexão, onde os processos cognitivos parecem voltados para dentro, em vez de guiados por objetos externos em um esforço contínuo de atenção.Embora subjetivo, o estado de tranquilidade é associado a estímulos externos bastante objetivos: mata, riachos, ondas do mar indo e vindo.Curiosamente, não é o som das ondas que é tranquilizante e sim sua imagem. O som do mar é semelhante em qualidade ao som de uma autoestrada, por exemplo, com seu ronco constante. Foi essa semelhança que um grupo de pesquisadores no Reino Unido explorou recentemente para investigar por que, para o cérebro, um vídeo de ondas quebrando comunica tranquilidade, e um vídeo de estrada, não.A resposta parece estar em um conjunto de estruturas no cérebro que vêm ganhando atenção por formarem a chamada "default network", ou "rede padrão", na falta de nome melhor: estruturas que estão mais ativas quando não estamos fazendo nada em especial. São as partes do córtex cuja atividade predomina quando estamos à toa, e que estão relacionadas, portanto, com o estado autorreferencial: você pensando em você, da sua pele para dentro, e não no mundo externo.Pois paisagens naturais, ao contrário das construídas pelo homem, parecem facilitar o entrosamento dessas regiões com outras partes do cérebro, promovendo esse estado voltado-para-dentro que chamamos de tranquilidade. Talvez seja a falta de objetos se movendo imprevisivelmente, atraindo para si nossa atenção; talvez sejam as curvas suaves. Seja por razões inatas ou aprendidas, a natureza faz o cérebro encontrar paz interior.

SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, é professora da UFRJ e autora de "Pílulas de Neurociência para uma Vida Melhor" (ed. Sextante) e do blog
www.suzanaherculanohouzel.com Mais Corrida
Equilíbrio/ Folha de São Paulo 4 de novembro/2010

Apontadora de Idéias

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"A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu. (...) Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas... Mas não posso explicar a mim mesma." (Lewis Carroll)

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