quarta-feira, 30 de setembro de 2015

E não foram felizes para sempre



Desculpem-me, mas hoje não estou feliz; meus olhos estão assustados, a cabeça atordoada e o coração pulsa lenta e silenciosamente. É desolação. O pensamento insiste em fixar-se numa antiga maldição chinesa: “Possa você viver em tempos interessantes”- lembrando-me de que somos protagonistas de tempos interessantes.

Estamos impactados com a imagem de uma criança síria de três anos afogada nas águas do Mediterrâneo. Seus pais eram parte integrante dos dois milhões de refugiados, exaustos e famintos, buscando por um mundo sem guerra e com mais oportunidades.

Infelizmente, não foi somente essa criança que morreu. Tantas outras! Famílias inteiras são dizimadas pela fome e doenças. Milhares marcadas “a ferro” por estupros, pedofilia, tráfico de drogas, tráfico humano, abandono, xenofobia, homofobia...

Tristeza, impotência, descrença não em Deus, mas nos homens. Na própria humanidade que caminha a passos de tartaruga.

Em 1936, Saint Exupéry, em seu livro, Terra dos Homens, já fazia referência à desumanização, quando escreveu: “ Não há jardineiros para os homens. Mozart criança irá para a estranha máquina de entortar homens”. E um pouco mais adiante:  ... “é  Mozart assassinado um pouco em cada um desses homens!”  Verdade implacável!

Quantas crianças ceifadas da possibilidade de viver sua infância; quantos adolescentes sem condições de desenvolver seus talentos, quantos adultos com os caminhos de realização pessoal fechados e quantos idosos abandonados.

 É o adoecimento ontológico - adoecimento da natureza humana; tempos de coisificação, tempos de não pessoalidade - da não abertura para o encontro com o outro; onde interesses econômicos e políticos sobrepujam as necessidades humanas; onde há uma intensa dissociação do homem com a natureza e com a sua própria condição humana.

Quantas vezes Herodes, quantas vezes Pilatos, quantas vezes Zaqueu? repetição agônica!

Caro poeta, Vinícius de Moraes,  sei “que é melhor ser alegre do que ser triste”, mas como?
Como ser feliz quando há tantas vidas sobrecarregadas de sofrimentos, que conhecem a miséria e o desespero, geralmente, contra sua vontade?

Como acreditar que um dia a humanidade mudará para melhor?

Mas... é  necessário o exercício da fé na possibilidade humana. É preciso acreditar que temos condições de nos transformar em pessoas melhores e mais saudáveis.

Nesse momento tão traumático é importante que entendamos a comoção global das pessoas como sinal de uma  humanidade ainda viva dentro de cada pessoa e, talvez tenhamos de nos espelhar nos ipês que, na estação mais seca, respondem com uma floração exuberante.

texto: Eliete T. Cascaldi Sobreiro
imagem: internet   Aylan
texto publicado no jornal: O COMBATE (26 de setembro de 2015)




segunda-feira, 21 de setembro de 2015

A ostra e sua pérola

Ostra feliz não faz pérola.
Rubem Alves  
                                             
Querida ostra, sou sua pérola; sou o resultado de sua luta em sobreviver.
Nasci do seu esforço em não morrer, cresci de sua briga por respirar.
Sou aqueles grãozinhos de areia que invadiram, impiedosamente, suas entranhas sem que você pudesse controlar.
Seu nácar protegeu-me e agora sou essa pérola maravilhosa que a todos seduz,  mas que só você soube gestar.
Meu valor é o seu valor; minha beleza espelha sua beleza. Por saber que a vida nos pede luta, destreza e, em alguns momentos, asperezas, reverencio-lhe porque sei do que você foi capaz: exemplo de uma vida de muita dedicação e que mesmo ferida foi capaz de envolver-me de amor.  
Você é uma pequena que se revelou gigante; eu sou sua pérola, sua mais bela criação.
Em seu isolamento me libertou; não me aprisionou como posse e propriedade sua e seu amor é oferenda ao mundo.

Mas a vida é isto: luta e entrega. Agora estou pronta para cumprir o meu destino.
Talvez encontre um ourives generoso que me faça brilhar num lindo colar e, quem sabe, poderei selar a união de um grande amor.

artigo publicado no jornal "O Combate"
texto: Eliete T. Cascaldi Sobreiro
Foto: internet

domingo, 13 de setembro de 2015


“O espírito do amor segreda com tanta timidez”

Leio, releio, torno a ler, incansavelmente, a crônica Imagem” de Cecília Meireles.
Como é possível escrever, com tamanha clareza, uma batalha travada no interior de uma pessoa?
O texto narra a história de uma mulher que encontra, em seu caminho, um gatinho abandonado e doente e, diante dessa situação, é rodeada por uma “assembleia de espíritos”,  que tentam convencê-la  a ignorar tal questão.
Ela vacila, sofre e desperdiça a oportunidade de fazer a diferença na vida de alguém -  seja animal ou gente.
“E só o espírito do amor segredava tímido: ‘Toma-o nas mãos e leva-o contigo!
Verás que, no teu colo, seus olhinhos lacrimosos se fecharão adormecidos; sua fome se esquecerá, suas feridas fecharão... ’ Mas o espírito do amor segreda com tanta timidez” .
Por que será que o espírito do amor reside de um modo tão tímido e fraco em nós, seres humanos?
Por que as pessoas não se sustentam nos três pilares da vida humana: a inteligência, a coragem e o amor ao próximo, citados pelo psicólogo Victor Frankl?
Por que será que, às vezes, é tão difícil amar quem está próximo e  nas situações cotidianas?
Temos o potencial para o amor, com certeza, mas o espírito prático do mundo fala mais alto.
“Senti o desejo de ajudar aquela pessoa, mas sei que não devemos dar dinheiro para um pedinte, pois ele gastará com droga ” .
“Dei um prato de comida para o moço que bateu na minha porta, mas é só dessa vez, pois ele pode se acostumar e voltar sempre”.
 “Chequei em casa com o propósito de ler um livro para meu filho pequeno dormir, mas acabei deitando no sofá e peguei no sono.
“Já cansei de falar para meus filhos irem ver os avós , mas,  você sabe, a juventude é difícil!”
“Sei que preciso ir mais frequentemente  à casa dos meus pais, mas chego tão cansado do trabalho, que acabo desistindo e aí  sinto-me culpado. ”

Cecília Meireles parece ter razão quando diz que “o espírito

 prático é o mais covarde e o mais vil espírito da era

 contemporânea”. Estamos perdendo a pessoalidade e o 

cotidiano não tem sido vivido como um lugar de encontro e

 partilha. Há uma hipertrofia funcional e o ser humano, com 

pouca ressonância da sua afetividade,  está sendo, cada vez

mais, menos humano.


Texto: Eliete T. Cascaldi Sobreiro

Imagem: internet




terça-feira, 1 de setembro de 2015

Minhas vizinhas 


Não importa! Não importa mesmo quem mora mais perto, em que direção, o quanto de distância, ou qualquer outra coisa do gênero.
O que vale é que elas são minhas vizinhas e, com certa frequência, me visitam. Fico a imaginar a casa delas. Dona Tristeza deve morar em uma casa cinza, apertada, janelas bem trancadas e sem alpendre.
Dona Alegria, por sua vez, deve ter uma casa toda ensolarada, com janelas azuis, vasos de flores nas paredes, amplas varandas. Nas varandas, periquitos, passarinhos, cachorro, gato e uma rede bem rendada.
Dona Tristeza, quando me visita, vem com uma mala pesada e vai entrando sem pedir licença. Pouco fala, pouco se explica. É cheia de rodeios, não se revela. Faz questão de avisar que está chegando, pois  arrasta seus chinelos fazendo um barulho irritante. Tem uma peculiaridade: geralmente chega à noite, quando o sol, há muito, já se pôs. É de uma mudez e de uma teimosia...
Prende-me em sua energia, afasta-me de todos e de tudo e leva-me a lugares que sempre evito explorar.
Dona Alegria parece-me mais tímida e é muito respeitosa.  Sempre espera por um sinal, um gesto, um convite para se aproximar. Nunca vem sozinha; sempre lhe acompanha um cheirinho de alecrim, um calor gordinho, uma fita de filó que enlaça nossas mãos. Quando percebo, já estou rodopiando na sala, apaixonada por tudo que existe ao meu redor. São muitas horas, dias, meses em que somente falo bobeiras, sorrio à toa, canto bem alto, telefono para os amigos e faço mil planos com o tempo futuro, que sempre é recebido como um querido amigo.
Não sei como chegar à casa delas:  se viro à esquerda ou à direita do meu coração, apenas elas é que sabem me encontrar. Confesso que, por muito tempo, quis decifrá-las, conhecer suas origens, compreendê-las para dominá-las. Conseguiria, assim, levantar muros bem altos, colocar  câmeras  a fim de detectar e evitar a visita indesejável  da vizinha  Dona Tristeza. Ansiava, no entanto, por descobrir a casa da Dona Alegria, pois construiria uma chaminé que levasse uma fumacinha branca de boas vindas ou, então, o cheiro de um café passado e coado na hora.
Hoje estou em paz. Recebo-as, igualmente, porque sei que as duas têm muito a me ensinar.  Vivo os arredores dessas emoções procurando não afugentá-las, dando a cada visita a maior consideração, pois, somente  assim, tenho a possibilidade de me conhecer melhor e ser a pessoa que hoje sou.

texto: Eliete T. Cascaldi Sobreiro
imagem: internet




Apontadora de Idéias

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"A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu. (...) Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas... Mas não posso explicar a mim mesma." (Lewis Carroll)

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