
Questões como direito e deveres, e participação social dizem respeito à convivência entre as pessoas e, portanto, ao simples e delicado cotidiano das crianças.
Que tipo de gente estará andando pelas ruas daqui a cinco ou vinte anos? Como agirão as pessoas ao pagar a conta no caixa, ao pedir um café na padaria, ao passear pelo parque, ao abrir a porta do elevador, ao telefonar, ao entrar no ônibus, ao esperar na fila do teatro, do estádio de futebol? No fundo, são questões assim que estão em pauta quando a idéia abstrata da cidadania volta a ecoar, às vésperas do Dia da Pátria ou das eleições. Direitos e deveres, participação social, contribuição à democracia, tributo aos heróis, tudo isso diz respeito à convivência entre as pessoas e à sua história comum. Diz respeito, portanto, ao simples e delicado cotidiano das crianças. E aí que se constrói a capacidade de compartilhar, de respeitar e se respeitar, de ser cidadão.


Esta vontade não nasce por si. É fruto do crescimento, da humanização trabalhosa e gradativa que precisa começar na infância. É uma necessidade vital, e por isso é uma responsabilidade inalienável dos pais. São eles que transmitem aos pequenos a noção essencial de cuidar e receber cuidados, e nela estão envolvidas todas as experiências concretas de poder e não poder, de dever e proteção, de prazer e frustração, de amparo e compreensão diante dos sentimentos que fervem a cada momento do dia. Ou seja, é com o “não”, o “chega de TV”, com a hora do banho e da refeição – enfim, com os limites – que se faz a base para uma vida ativa e construtiva.
Mais uma vez, tudo começa na usina do afeto, onde os sentimentos brutos podem se depurar e se fundir, deixando de ser devastadores para se transformar em simples coisas de se sentir, maravilhosas, tristes ou nem tanto. É esta maturidade emocional que dita o grau de disposição para o convívio, para os prazeres e dissabores das relações com as pessoas em casa, no bairro, na boate, na praia ou nas ruas da cidade. Só quem cresce afetivamente pode deixar de ver as frustrações e revoltas diárias como hecatombes capazes de destruí-lo. Daí é possível se abrir para o mundo, sem receio de se desintegrar, sem precisar ser medrosamente truculento ou violento. Então é que se pode pensar também nos outros, e não apenas num fraco e desprotegido euzinho.
Sem esta base para as crianças, o princípio da cidadania está comprometido. Se os pequenos não puderem receber limites claros, coerentes e limpos, sem tom punitivo ou chantagista, se não puderem sentir toda raiva, tristeza e desapontamento causados pelo “não”, sem repressões e julgamentos, não poderão desenvolver sua capacidade afetiva. Os pais que falham aí estão simplesmente deixando de cuidar de seus filhos. São estes filhos que saem pela vida pedindo os limites e o amparo de que precisavam para crescer. À certa altura, grandes e frágeis, só a lei pode ser seu limite. E para provocá-la, farão o que for preciso. São estes os vândalos depredadores, para citar um exemplo menos trágico nesta crônica policial de final previsível.
A lei é, de fato, a versão adulta dos limites, e bem que poderia ajudar os grandes órfãos a ter alguma sensação de estar recebendo cuidados. Mas o Estado, construído para isso, não anda lá muito capaz de exercer esta paternidade exigente e protetora. Talvez porque em seu comando haja maiores abandonados demais. Fica difícil até para os cidadãos afetivamente emancipados exercerem a cidadania. Afinal, alguém só pode se sentir plenamente cidadão quando sente que os representantes da sua comunidade o vêem como importante, o ouvem e consideram aquilo que diz, quando estabelecem leis minimamente humanas que limitam a satisfação de suas vontades mas também o protegem das vontades alheias, da violência, do engodo, da manipulação, da mentira...

Respeito
Sente-se plenamente cidadão quem recebe educação, saúde e segurança, quem vê sua família atendida em suas necessidades para uma vida digna. Só quem é concretamente reconhecido como um sujeito de valor pode se sentir co-proprietário e responsável pela praça, pelo telefone público, pela vidraça da escola, pelo ar, pela floresta, pelo planeta, e então pode se lembrar naturalmente de manter limpa a praia no feriadão. Ou seja, não há hoje muitas ferramentas para criar cidadãos a partir da ação do Estado. Será uma boa ajuda se pelo menos as escolas, os grupos religiosos e as ONGs puderem oferecer cuidados. Mas em nenhum lugar estes cuidados poderão criar o afeto que permite cumprir a lei por vontade própria. Isso só se cria em casa.
A cidadania afetiva e efetiva que se constrói a partir da infância nada tem a ver com rigidez, com combinação, com “fazer certinho” e de forma sistemática, com a política e ecologicamente corretos ou quaisquer outras camisas-de-força pós-modernas. É a noção de que o bem-estar de cada um depende do cuidado que se oferece e se recebe num círculo de trocas. É gostar de respeitar e ser respeitado. Mesmo que o País faça pouco por seus indivíduos, os cidadãos emancipados não precisam ficar à espera de “padrinhos” que ofereçam proteção e cuidados ilusórios quando se infiltram nas instituições. Não precisam do rouba-mas-faz (de conta que cuida das pessoas). Têm força para enfrentar o abandono, e até para cuidar dos outros. É esta capacidade de afeto que torna possível construir uma comunidade nacional, algo mais do que uma platéia de desfile, uma torcida de milhões que enrola e esquece suas bandeiras no fim de cada Copa.
Texto extraído do Jornal Gazeta do Povo
06/09/1998
Ivan Capelatto
e especialistas convidados.
Sente-se plenamente cidadão quem recebe educação, saúde e segurança, quem vê sua família atendida em suas necessidades para uma vida digna. Só quem é concretamente reconhecido como um sujeito de valor pode se sentir co-proprietário e responsável pela praça, pelo telefone público, pela vidraça da escola, pelo ar, pela floresta, pelo planeta, e então pode se lembrar naturalmente de manter limpa a praia no feriadão. Ou seja, não há hoje muitas ferramentas para criar cidadãos a partir da ação do Estado. Será uma boa ajuda se pelo menos as escolas, os grupos religiosos e as ONGs puderem oferecer cuidados. Mas em nenhum lugar estes cuidados poderão criar o afeto que permite cumprir a lei por vontade própria. Isso só se cria em casa.
A cidadania afetiva e efetiva que se constrói a partir da infância nada tem a ver com rigidez, com combinação, com “fazer certinho” e de forma sistemática, com a política e ecologicamente corretos ou quaisquer outras camisas-de-força pós-modernas. É a noção de que o bem-estar de cada um depende do cuidado que se oferece e se recebe num círculo de trocas. É gostar de respeitar e ser respeitado. Mesmo que o País faça pouco por seus indivíduos, os cidadãos emancipados não precisam ficar à espera de “padrinhos” que ofereçam proteção e cuidados ilusórios quando se infiltram nas instituições. Não precisam do rouba-mas-faz (de conta que cuida das pessoas). Têm força para enfrentar o abandono, e até para cuidar dos outros. É esta capacidade de afeto que torna possível construir uma comunidade nacional, algo mais do que uma platéia de desfile, uma torcida de milhões que enrola e esquece suas bandeiras no fim de cada Copa.
Texto extraído do Jornal Gazeta do Povo
06/09/1998
Ivan Capelatto
e especialistas convidados.