quinta-feira, 3 de junho de 2010


Pôr da Lua
Hoje estou com uma tristeza mansa e bonita. Acabo de contemplar um pôr-da-lua...
Ah! Você nunca viu ninguém falar sobre "pôr-da-lua”? Nem eu. Os poetas falam muito sobre o pôr-do-soL "Mas eu fico triste como um pôr-do-sol”, escreveu Alberto Caeiro. E Wordsworth, nos seus versos famosos: «As nuvens que se juntam ao redor do sol que se põe/ ganham suas cores solenes/ de olhos que têm atentamente/ montado guarda sobre a mortalidade humana”. E Browning: “Quando nos sentimos mais seguros, então acontece algo: um pôr-do-soL E outra vez estamos perdidos». E Bachelar: A vela que se apaga é um sol que morre. A vela morre mesmo mais suavemente que o astro celeste"".
Os pores-do-sol nos comovem porque somos seres diurnos. O pôr-do-sol é o fim do dia. Metáfora do fim da vida. Daí a sua tristeza. E se fôssemos seres noturnos, aves para as quais o pôr-do-sol não é o fim, mas o inicio da noite? Então o sol poente anunciaria a madrugada da noite, o nascer do viver.
Põe-se o sol; nasce a lua. Com a lua nascente, para os seres noturnos, começa o tempo da vida, o tempo do amor. O cri-cri dos grilos, o coaxar dos sapos, o pio das corujas, o piscar dos vaga-lumes e o vôo frenético das mariposas. Pulsações de uma vida que desperta quando a noite cai e a lua nasce. Então, para os seres noturnos, um pôr-da-lua deve ter a mesma beleza triste que tem um pôr-do-sol para os seres diurnos.
Entre nós, humanos, não haverá seres noturnos? Indo um pouco mais fundo: não haverá em todos nós um ser noturno que aparece quando o ser diurno vai dormir? O sol desperta em nós o ser que pensa, age e trabalha. A lua desperta o ser que sonha, contempla e ama. Fala a Cecília sobre a lua que envolve os noivos abraçados. Ah! Como o verso ficaria ridículo se, em vez de lua, ela dissesse sol! A luz da lua desperta em nós o ser tranquilo. Parodiando Bachelard: «Quer ficar tranquilo? Contemple a lua que faz mansamente o seu trabalho de luz”. Há recantos da alma que só acordam sob a luz branca e fria da lua. Ouça os “Noturnos”, de Chopin, e sua nostálgica beleza. Como o seu nome diz, foi no silêncio da noite que Chopin os ouviu. E o “Clair de Lune”, de Debussy?
A psicanálise é um ser noturno. Ela só acorda quando o sol se põe e a noite desce. Ela só vê bem na escuridão. A luz do sol a ofusca. Por isso, durante o dia, ela fica em silêncio, deixando que outros falem. Descendo a noite, entretanto, os homens se põem a sonhar e a amar. É ai, em meio ao sonhar e ao amar, que a psicanálise acorda e se põe a cantar o seu canto manso de coruja de Minerva. Brilham luzes suaves na noite escura do inconsciente: estrelas, vaga-lumes, meteoros e luas, muitas luas... Quando essas luzes brilham, acordam os artistas, os poetas, os místicos e os intérpretes de sonhos. Estou triste porque contemplei um pôr-da-lua: Judith Andreucci era uma lua no mundo da psicanálise. Ela mergulhou no horizonte. Não mais veremos o seu brilho suave. Quem era ela?
Era uma maga de voz mansa e rosto tranquilo. Se estranham que eu a chame de maga, digo que foi o próprio Freud que reconheceu o parentesco entre a magia e a psicanálise (como Guimarães Rosa viu o parentesco entre a magia e a poesia).A psicanálise é um exercício de poesia. Não admira que Freud tenha encontrado iluminação para a sua arte não na ciência, mas na literatura. Somos literatura. Cada pessoa é um poema encarnado. Aprendemos psicanálise lendo-nos ruminantemente. Somos textos da literatura e da poesia do corpo. A nossa infelicidade —neurose, se quiserem— se deve ao fato de que nos esquecemos do poema que está em nós inscrito.
O psicanalista é o intérprete do poema estrangulado. Intérprete não no seu sentido comum, de alguém que diz em linguagem diurna o que o corpo diz em linguagem noturna. Essa é interpretação, necessária quando se trata de esclarecer obscuridades diurnas, de inspiração cartesiana, filosófica. Mas há um outro sentido para a palavra “interpretação”, que nos vem da música. O pianista lê a partitura silenciosa, deixa-se ser possuído por ela e, possuído, ele a “interpreta” ao piano: realiza-a como música, tornando sensível a beleza.
Pois nós somos partituras que nós mesmos não sabemos interpretar. O ofício do psicanalista é o oficio do artista: ele lê a partitura misteriosa que nós mesmos não entendemos e interpreta-a para que, ouvindo a nossa própria beleza, sejamos por ela libertados.
Judith Andreucci era psicanalista. Era uma intérprete, no sentido musical. Lembro-me bem da sessão em que conversamos sobre um sonho que tive: eu tocava o prelúdio 22, do primeiro volume do “Cravo Bem Temperado”. Mas o tocava de uma forma estranha, com as mãos cruzadas, enquanto dizia: “Esse prelúdio é muito organístico”.
A psicanálise (como a religião) tem uma vertente, a meu ver, sinistra, identificada por Bachelard de forma humorística: “O psicanalista é alguém que, diante de uma flor, logo pergunta: ‘Mas o estrume, onde está?”’. A doutora Juju — era assim que a chamávamos na intimidade— procedia ao inverso. Vendo estrume, perguntava: “E a flor, onde está?”. Ela se permitia ser levada pelo humor e pela beleza. Ela se deleitava com a minha música. Lembro-me que, relatando-lhe as coisas incríveis que aconteciam no sobradão colonial do meu avô, onde passei boa parte da minha vida, ela dizia com espanto e deslumbramento:
«Mas doutor, isso é mais fascinante que ‘Cem Anos de Solidão”’. Foi ela que me encorajou a explorar o inconsciente belo e equilibrado que é o nosso destino.
No seu consultório, havia uma gravura que me impressionou e da qual não me esqueço. Era um enorme bloco de gelo, transparente, um iceberg flutuando no mar e, dentro dele, uma figura humana congelada. Haverá metáfora mais forte para a condição humana?
A lua se pôs. Mas a sua luz, onde tocou, ficou...

Rubem Alves - psicanalista, escritor e professor emérito da Unicamp, é autor de “O Amor que Acende a Lua” e "Concerto para Corpo e Alma", entre outros. www.rubemalves.com.br

Apontadora de Idéias

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"A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu. (...) Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas... Mas não posso explicar a mim mesma." (Lewis Carroll)

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