sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Um persistente cio

Mario Sérgio Cortella
É muito interessante observar o quanto a ditadura da velocidade e do “não tenho tempo a perder” retiram do cotidiano das metrópoles (e de suas tristes simulações) uma das mais profundas maneiras de aproveitar, de fato, o tempo: a necessária paciência para a fruição, quase degustação lenta, dos movimentos de busca intensa do prazer originário do universo da leitura. Essa insana tacocracia, vivida sem reflexão, produz uma amarga rejeição à eroticidade inerente aos momentos nos quais é preciso entrar no cio emanado da leitura prazerosa, do mergulho intencional e povoadamente solitário que nos atinge quando nos abandonamos aos sussurros que vêm de dentro.
Por isso, ao escrever sobre A arte de amar (nela incluída a capacidade de não admitir a banalização do erótico no sexual), o psicanalista alemão Erich Fromm - nas suas geniais tentativas de juntar as concepções de Marx e Freud, que tanto influenciaram a contracultura dos anos 1970 - nos advertiu que “o homem moderno pensa perder algo - tempo - quando não faz as coisas depressa; entretanto não sabe o que fazer com o tempo que ganha, a não ser matá-lo”.
Há frase mais tola do que a daquele ou daquela que diz “acho que, para passar ou matar o tempo, vou ler alguma coisa”... Ler um livro para matar o tempo? Não! Afonso Arinos de Melo Franco, importante jurista e político mineiro, conhecido mais por ser autor da primeira lei em 1951 contra a discriminação racial, mas que também era escritor (ingressou na Academia Brasileira de Letras em 1958, mesmo ano no qual foi eleito Senador), escreveu em A escalada que “domar o tempo não é matá-lo, é vivê-lo”.



Viver o tempo! Vivificá-lo, torná-lo substantivo e desfrutável. Ora, nada como um bom livro para fazer pulsar a vida no nosso interior, vida essa que, quando absortos na leitura, nos faz esquecer a fluidez temporal e nos permite suspender provisoriamente a mortalidade e a finitude. É um pouco a percepção que teve o russo Turgueniev, um dos principais escritores do século 19. Na inquietante obra Pais e filhos escreveu: “o tempo, que freqüentemente voa como um pássaro, arrasta-se outras vezes que nem uma tartaruga; mas, nunca parece tão agradável como quando não sabemos se ele anda rápido ou devagar”.
Mas, o que é um bom livro? A subjetividade da resposta é evidente. No entanto, é possível estabelecer um critério: um bom livro é aquele que te emociona, isto é, aquele que produz em ti sentimentos vitais, que gera perturbações, que comove, abala ou impressiona. Em outras palavras, um bom livro é aquele que, de alguma maneira, te afeta e impede que passe adiante incólume.
A emoção do bom livro é tão imensa que se torna, lamentavelmente, irrepetível. Alvaro Lins, crítico literário pernambucano que chegou a chefiar a Casa Civil do governo JK, fez uma reflexão no Notas de um diário de crítica que expressa uma parte dessa contraditória agonia: “Ah, a tristeza de saber, no fim da leitura de certos livros, que nunca mais os leremos pela primeira vez, que não se repetirá jamais a sensação da primeira leitura, que não teremos renovada a felicidade de ignorá-los num dia e conhecê-los no dia seguinte”.
Certa vez o grande lingüista e pensador brasileiro Flávio Di Giorgi pergunta a um aluno em um sarau na PUC-SP se ele já houvera lido a Odisséia, de Homero; o jovem, cabeça baixa, um pouco envergonhado, diz que não. Imediatamente, o professor, olhos umedecidos, diz a ele, voz embargada e com a sinceridade de sempre: “Te invejo; eu já li”.
Assim - mesmo que quase tudo hoje em dia dificulte a urgência de vivificar-se com uma boa leitura, especialmente a estafa resultante do desequilíbrio e da correria incessante -, muitos não se deixam humilhar pelos assassinos do tempo; para impedir a vitória da mediocridade espiritual, há os que cantam com Djavan - na belíssima Faltando um pedaço - e sabem que “o cio vence o cansaço”...

Apontadora de Idéias

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"A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu. (...) Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas... Mas não posso explicar a mim mesma." (Lewis Carroll)

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