quarta-feira, 5 de maio de 2010

UMA PAIXÃO
Você sabe o que é ter uma paixão, meu senhor?
Foi assim que aquele homem cambaleante chegou até o banco do jardim onde eu esperava a condução para ir para casa. Foi logo me interrogando. Assustei, é claro, afinal não o conhecia, e pensei que poderia ser um assalto.
Mas aos poucos fui sentindo-me tranquilo , e acalmei os pensamentos ao perceber que ele olhava diretamente para meus olhos, e sua feição era de profunda tristeza.
Cresceu dentro do meu peito uma ternura por aquele ser humano, e uma vontade enorme de conhecer a sua história.
E assim perdi o ônibus que me levaria mais rápido para casa, e ganhei boas reflexões para minhas noites de insônia.
Esse homem, ao questionar-me, sabia que eu não teria respostas às suas dúvidas e muito menos seria capaz de aliviar sua dor, mas precisava falar, pois só assim, quem sabe, a dor daria uma trégua .
Paixão, que bicho é esse que corrói a gente por dentro?
Que coisa é essa que tira todo nosso sossego, que joga com a gente de maneira tão cruel?
Sabe moço, eu amei desesperadamente uma mulher e sei que ela também me amou.
Vivemos dias maravilhosos e, sem exagero, chegamos muito perto do Paraíso. Era maravilhoso! Nada perturbava nossos dias. Tudo que existia de lindo ao nosso redor, desbotava, pois embriagávamos um no outro. Tomávamos maior “porre” de amor ! E, como cachaça, uma vez viciados, cada vez precisávamos mais e mais um do outro.
Até que um dia, aconteceu com a gente o que aconteceu com Adão e Eva. Deus perguntou-me: “Onde está sua Eva?
Meu coração estremeceu, minha pele ficou toda arrepiada; senti medo. Ela havia saído , fora fazer algumas compras, e disse-me que voltaria logo.
E aí, seu moço, ela não voltou. Uma bala perdida atravessou o peito do meu amor!
Agora, pergunto-lhe: O que faço com este amor que perambula dentro de mim, que não dorme, que não tem sossego , que quer encontrá-la, custe o que custar?
O que faço com a paixão que não consegue arrumar uma casa para morar? Que recusa aceitar que a morte capturou sua amada?Sou agora refém dessa paixão, que, tatuada em minhas vísceras, teima em não querer entender que tudo terminou.
Meu senhor, seu transporte chegou, segue seu caminho! Obrigado por escutar-me, ficarei aqui esperando a Lua apontar lá no céu, linda e resplandecente! Ela também espera pelo seu amado...


Paixão, desafio do mês de maio da Fábrica de Letras



A Luta pela Recordação

Os meus pensamentos foram-se afastando de mim, mas, chegado a um caminho acolhedor, repilo os tumultuosos pesares e detenho-me, de olhos fechados, enervado num aroma de afastamento que eu próprio fui conservando, na minha pequena luta contra a vida. Só vivi ontem.
Ele tem agora essa nudez à espera do que deseja, selo provisório que nos vai envelhecendo sem amor. Ontem é uma árvore de longas ramagens, e estou estendido à sua sombra, recordando.
De súbito, contemplo, surpreendido, longas caravanas de caminhantes que, chegados como eu a este caminho, com os olhos adormecidos na recordação, entoam canções e recordam. E algo me diz que mudaram para se deter, que falaram para se calar, que abriram os olhos atónitos ante a festa das estrelas para os fechar e recordar... Estendido neste novo caminho, com os olhos ávidos florescidos de afastamento, procuro em vão interceptar o rio do tempo que tremula sobre as minhas atitudes. Mas a água que consigo recolher fica aprisionada nos tanques ocultos do meu coração em que amanhã terão de se submergir as minhas velhas mãos solitárias...
Pablo Neruda, in 'Nasci para Nascer'

Apontadora de Idéias

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"A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu. (...) Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas... Mas não posso explicar a mim mesma." (Lewis Carroll)

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