quarta-feira, 1 de abril de 2015


imagem da internet


A feminilidade não é branca

Há tempo (põe tempo nisso) namoro a idéia de parar de tingir meus cabelos. No fim do ano decidi. Já pensando nisso, há mais de dez anos, troquei a tinta por colorante, imaginando que, quando o dia chegasse, o colorido fosse se esvaindo, deixando o branco ou o grisalho emergir naturalmente. 
Pensava eu tratar-se de uma decisão de foro íntimo. Mas que nada! Não ouvi nenhuma palavra de apoio nem da família, nem de amigos, nem de conhecidos: "Você não pode!". "Não combina!". "Grisalho não é jovial!". "Branco põe para baixo!". Na minha santa ingenuidade, não atinava que estava afrontando um tabu. Entendi que a mulher não pode ser grisalha, mas no homem isso é charme e distinção. Existem brancos azulados, bem tratados, que inspiram respeito e até veneração. São os da matriarca, da veneranda chefe de família que ostenta um poder, mas não os da sexualidade.


Exibir os cabelos grisalhos é ostentar a fêmea morta no corpo vivo de uma mulher: é tabu



A questão não está apenas em "aparentar idade" -há quem defenda as rugas. Mas a transformação natural dos cabelos com a idade é uma afronta. Não chega a ser crime, mas senti que estava perto de cometer uma transgressão. Um homem -inteligente e humanista- chegou a enunciar, com todas as letras, que mulher não pode deixar de pintar os cabelos. "Põe uma hena", disse ele. E eu aqui pergunto a mim e a você: por quê?
Olhando a minha volta, só vejo cabelos tintos. É bem verdade que meu círculo de amizades inclui poucas figuras estilo "vovozinha". Minhas amigas são profissionais, além de mães e avós. Conheço algumas exceções, mas elas chamam mais atenção e atraem mais comentários desairosos do que uma "vamp". Escrevo esta coluna em 22 de janeiro. Veraneando à beira-mar desde 23 de dezembro, estou com os cabelos descolorados, de um jeito desgrenhado, caminhando para o grisalho e, portanto, a caminho de uma auto-exclusão social. Trata-se de uma condenação cruel. Podemos envelhecer, mas não tentar nem disfarçar é descaso.
Ostentar a fêmea morta no corpo vivo de uma mulher é tabu. Os homens grisalhos são charmosos, enquanto as mulheres grisalhas parecem lembrar alguma coisa da qual todos queremos esquecer. O cabelo grisalho parece remeter a alguma "cena temida" que conhecemos, mas não queremos rever.
Um colega baiano com o qual eu comentava minha desdita me contou um ditado local. Segundo ele, pêlos pubianos grisalhos, lá no sertão, eram o primeiro sinal de impotência senil. 
A voz desse povo pode ser aquela que está me forçando a continuar a tingir os cabelos. Lembrei-me ainda do livro "Amêndoa", da autora muçulmana Nejdma, no qual a personagem principal relata sua dificuldade ao reencontrar um antigo amante. Dizia ela que o que mais a amedrontava em voltar para a cama com ele, 30 anos depois, era sua púbis esbranquiçada e rala. Será que vale para nós também? O grisalho é, sem dúvida, um movimento entre a cor e o branco. Ostentar o grisalho seria uma confissão de deserotização? Mas e o grisalho na cabeça do homem, por que pode? Tenho muitas questões e poucas certezas.
Continuando a pensar, parece-me pouco freqüente (se é que existe) a imagem de uma púbis envelhecida na iconografia universal. Na pornografia é claro que não há, mas nem nas belas-artes me lembro de ter visto -e na história da humanidade a maioria dos pintores é de homem. Não tenho respostas, aceito contribuições. Dentro de dois dias tingirei meus cabelos. Se a cena é temida, abdico de agredir meus semelhantes com a minha presença. 
A experiência foi válida. Conheci na pele o que é pretender quebrar um tabu e, ao mesmo tempo, conheci um tabu que eu não sabia que existia.



ANNA VERONICA MAUTNER é psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora). 



Apontadora de Idéias

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"A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu. (...) Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas... Mas não posso explicar a mim mesma." (Lewis Carroll)

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