GIRO DE IDEIAS TEM COMO OBJETIVO "POLINIZAR" O CORAÇÃO E O PENSAMENTO DE QUEM POR AQUI PASSA.
segunda-feira, 22 de outubro de 2012
Affonso Romano de
Sant’Anna
A poesia exige um silêncio abismal. E isto pode levar à
vertigem.
Ou: a
poesia é quando se está à beira de si mesmo. Cair em si, sem se perder, ou
achar-se do outro lado de si mesmo. Isto exige perícia. Pois há que ouvir sons,
ruídos, mensagens que fluem também do lado de fora, no exterior.
Certa vez
fiquei duas horas sobre as pedras do Arpoador, à toa, apenas ouvindo o mar. O
marulhar do mar. O marulhar da alma. É preciso uma certa ousadia para se ouvir o
nada. O nada é onde tudo começa. É de onde surge o a voz da poesia.Estranha
relação entre o eu e o mundo. O pessoal e social. Há que haver uma orquestração.
Não é de muita valia ficar chorando pelos cantos. O choro pessoal ainda não é
poesia.Tem que haver algo mais: converter-se em coro. Por isto a voz do poeta é
uma voz de utilidade pública. Quando não sabemos como dizer certas coisas,
pedimos a voz do poeta emprestada e entoamos uma verdade simbólica.Rainer
Maria Rilke, poeta alemão, pediu emprestado um castelo para, isolado, ouvir
melhor o que os querubins lhe diziam. Victor Hugo foi para as ruas e
barricadas ouvir a voz de seu tempo. Rimbaud, de repente, calou-se para
sempre. Ficou mudo. Um zumbi perdido nos desertos africanos. Sem voz. Quando
Orfeu soava seus versos as bestas mais ferozes se acalmavam e até as pedras o
entendiam. Como cada pássaro tem um canto especial, o poeta tem que descobrir
qual a sua voz interior. Não se pode cantar com a voz do outro. Claro que
alguns, na literatura e na vida, começam imitando o canto alheio. É um
aprendizado. Camões ouvia Virgilio
e Homero. João Cabral de Melo Nelo começou ouvindo Carlos Drummond. Na música
popular a mesma coisa: Dalva de Oliveira gerou Angela Maria. Mas João Gilberto
não pode cantar como Orlando Silva ou Nelson Gonçalves. Ou vice-versa. Cada
qual no seu canto. Na sua voz.E já que ouvir a voz interior é um risco,
alguns a ouvem, e desesperam. Outros tapam os ouvidos. Enchem sua vida de ruídos
espetaculares. O músico ( como o poeta) faz falar o espaço em branco. Faz
falar o indizível. Pausa é música. Música é pausa no ruído cotidiano. Música é a
salvação do ruído.Ecomo esse mundo ficou barulhento, meu Deus! E se poesia
é voz oculta sob a prosa, em certas épocas a voz do cantor e do poeta são
perigosas. Eles fazem falar o silêncio, o que foi calado, reprimido. As
ditaduras nos dão estranhas licões de poesia.Repito: poesia exige um
silêncio abismal. Ler, escrever ou
ouvir poesia é abismar-se.
"A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu. (...) Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas... Mas não posso explicar a mim mesma."
(Lewis Carroll)