quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

UMA NOITE PARA FICAR SEMPRE NA MEMÓRIA











 






















Fotos: RENECOLLOR
 
 
 
 
 
 
 
 
 

sábado, 7 de novembro de 2015


Caixa de lápis de cor

 

 

 Todo mundo é confuso como vozes na noite.

Fernando Pessoa

 

 

Quando ainda estudante de psicologia, lembro-me de uma professora que tinha um jeito muito carinhoso de aproximar-se de alguém que estava com depressão. Ela perguntava: "Quem roubou sua caixa de lápis de cor"?
 
 Ou então, “..hoje parece que o vermelho não está aí!”, para falar da falta de vitalidade, energia e disposição que  presenciava naquela pessoa.

Sabemos que as cores revelam o nosso estado de espírito e de saúde, influenciam nossa conduta e até mesmo as nossas emoções.

Podemos brincar com a ideia da caixa de lápis de cor, dizendo que na tristeza –sentimento não patológico - os lápis de cor não foram perdidos, mas precisam ser apontados. 

Na depressão, porém, tudo é diferente. A sensação é de não ter nenhum lápis colorido. Só há lugar para apatia e para o vazio. A vitalidade é quase nula. Há uma sensação de perda muito grande e o mundo mostra-se carregado de ameaças.

 A pessoa com depressão sente-se despojada de certas formas de sentir e ser, e tem dificuldade em conviver socialmente; até mesmo com os familiares. Afasta-se do contato para evitar a dor e a vergonha, pois não consegue compartilhar dos sentimentos de alegria e otimismo que o Outro demonstra ter.

A depressão é uma doença do corpo todo e não só do cérebro. Atualmente a O.M.S. estima que a depressão afeta quatrocentos e cinquenta milhões de pessoas em todo o mundo e que o número dobrou nos últimos cinquenta anos.

Mas, mesmo com todas as informações, ainda é uma doença incompreendida e bem pouco tolerada.

Na História da Humanidade, encontramos desde sempre o procedimento de atribuir ao doente a culpa dos males que o afligem e com a depressão isso parece ser ainda mais forte. É comum essas pessoas sentirem-se incompreendidas ou “cobradas” por não conseguirem reagir de forma diferente.

Assim, além de enfrentar o sofrimento psíquico, a pessoa também sofre com o preconceito.

É necessário e urgente termos, frente às doenças da alma, maior compreensão e aceitação, e não nos fecharmos em resistências tolas.

Se formos sensíveis, inteligentes e humanos podemos fazer dessa situação uma ótima oportunidade de viver com o Outro a experiência de companhia, amizade e solidariedade. Ficar perto um pouquinho, tocá-lo e ouvir esse ser humano tão debilitado emocionalmente são os bálsamos necessários para os hematomas da alma. Não é necessário ter uma explicação convincente sobre o porquê da doença ou dizer palavras sábias de fortalecimento. O fundamental é a intenção de acolher.

Para essas situações das quais  ninguém está imune de viver, Arthur da Távola deixou-nos uma bela receita:

“Só quem já foi capaz de sentir os muitos sentimentos do mundo é capaz de saber algo sobre as outras pessoas e aceitá-las,com tolerância.
Sentir os muitos sentimentos do mundo não é ser uma caixa de sofrimentos.
Isso é ser infeliz. Sentir os muitos sentimentos do mundo é abrir-se a qualquer forma de sentimento.”

 

O prazer de ver o mundo como uma linda caixa de gizes coloridos, que está ao nosso dispor, vem devagar nas pessoas com depressão, e cabe a todos nós ajudá-las nesse processo. Mas, para isso, precisamos crer na capacidade de renovação de cada ser humano e lembrar que toda doença pede ação, mas também, o exercício da paciência.
 
texto: Eliete T. Cascaldi Sobreiro
           escrito para o Jornal O COMBATE
imagem: da internet

 

segunda-feira, 19 de outubro de 2015




Nó na linha

Ninguém deve esquecer o que acha importante.
J.M.Coetzee

Minha avó queria me ensinar a costurar e eu desejava costurar tal qual ela o fazia.
O movimento daqueles pés no pedal de sua máquina de costura era fascinante!

Como controlar com os pés a velocidade dos pedais e, ao mesmo tempo, ter tanta agilidade com as mãos?

Pernas fortes e decididas eram o vapor de sua máquina de costura e, em pouco tempo, eis, em minhas mãos, um lindo vestido. Como desejei ganhar aquela máquina de costurar sonhos; como sonhei sentar naquela cadeira e dominá-la, como se faz com um cavalo bravo ou como um exímio maquinista de trem que leva seus vagões pelas estradas sinuosas!

Mas...  quando me deparei com os outras tarefas da costura, o fascínio foi esmaecendo-se. Colocar a linha na agulha, dar o nó na linha eram gestos difíceis demais.
Meus dedos relutavam; não me obedeciam, mostravam-se desajustados e recusavam-se a dar o nó na linha. Desmanchar a costura, cerzir, alfinetar, passar carbono e carretilha eram decepcionantes!

O desejo de costurar ficou órfão; a paciência bateu em retirada, e eu?  Somente pensava em acompanhá-la.
Demasias! Não suportava a precisão que a costura exigia.

Por fim constatei, com um  certo  alívio e com muita tristeza, que não possuía as habilidades necessárias para tão grande Arte.
Costurar não foi a primeira dificuldade que encontrei, mas quis a memória guardar  a experiência do primeiro nó na linha da minha vida.

Sei que minha avó percebeu toda dificuldade, mas nunca se zangou nem me criticou. Continuou amando-me com a mesma intensidade.

Hoje, muito tempo depois, sei que seu amor e dedicação não foram em vão. Não me tornei uma costureira exímia, mas penso que essa inabilidade em fazer o nó na linha acompanha-me e,  de uma certa  forma, lucro com isso à medida que procuro enfrentar, com um pouco menos de confusão, as situações adversas que acontecem em minha vida.

texto:Eliete T. Cascaldi Sobreiro publicado no jornal :

O COMBATE

Imagem da internet


terça-feira, 6 de outubro de 2015

Barcos ao léu


Chove torrencialmente lá fora. A chuva varre os telhados, afoga as calhas, lava carros e ruas. É a estação das chuvas. Dentro, uma vela e fósforos estão a postos, caso, falte a luz. As crianças estão eufóricas. Correm da porta à janela de vidro para verem a enxurrada que está se formando. É um misto de sentimentos; medo e alegria fazem com que elas desejem a chuva e, ao mesmo tempo, anseiem que passe depressa.

A atenção é toda voltada para a enxurrada, o quanto ela está grande.
O jogo de botão, as bonecas o ferrorama e todos os outros brinquedos, por hora, estão totalmente esquecidos. As crianças esperam a ordem do capitão-pai para começarem a executar os barcos que deverão zarpar com uma difícil missão.

Apesar da fragilidade do material, acreditam que seus barcos irão muito longe, alcançando lugares desconhecidos e levando mensagens para quem os encontrar. Os barcos são pintados com bandeiras desse mundo, com o endereço de sua origem e com o nome dos construtores. É uma tarefa e tanto, logo não é possível postergar... atrasar...
 A enxurrada pode passar depressa demais, e não esperar pelas embarcações.

 A chuva, aos poucos, acalma e as crianças junto com o capitão – pai  correm até a beira da calçada para colocarem seus barcos que, amedrontados,   oscilam  com o volume e com o movimento impetuoso das águas. Alguns sucumbem assim que saem, outros seguem vigorosos e corajosamente em direção do bueiro- local misterioso - onde se define o futuro das embarcações.

Naus que são tragadas pelo ventre dos bueiros dando-lhes direção e força para prosseguirem em sua jornada.
As crianças retornam às suas casas ávidas de esperanças de que os barquinhos irão encontrar novos mundos, terras virgens, homens gigantes e que desejarão conhecê-las.
Dormir e sonhar com esse encontro é o que lhes restam fazer naquele momento; sonhar com as naus e suas infinitas possibilidades de um novo devir.



E, se tiverem sorte, esse devir estará sempre vivo e ressoando em suas mentes adultas, trazendo-lhes a capacidade de celebrar o cotidiano como uma eterna revelação.

texto: Eliete T. Cascaldi Sobreiro
imagem: internet
Artigo publicado no jornal O COMBATE

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

E não foram felizes para sempre



Desculpem-me, mas hoje não estou feliz; meus olhos estão assustados, a cabeça atordoada e o coração pulsa lenta e silenciosamente. É desolação. O pensamento insiste em fixar-se numa antiga maldição chinesa: “Possa você viver em tempos interessantes”- lembrando-me de que somos protagonistas de tempos interessantes.

Estamos impactados com a imagem de uma criança síria de três anos afogada nas águas do Mediterrâneo. Seus pais eram parte integrante dos dois milhões de refugiados, exaustos e famintos, buscando por um mundo sem guerra e com mais oportunidades.

Infelizmente, não foi somente essa criança que morreu. Tantas outras! Famílias inteiras são dizimadas pela fome e doenças. Milhares marcadas “a ferro” por estupros, pedofilia, tráfico de drogas, tráfico humano, abandono, xenofobia, homofobia...

Tristeza, impotência, descrença não em Deus, mas nos homens. Na própria humanidade que caminha a passos de tartaruga.

Em 1936, Saint Exupéry, em seu livro, Terra dos Homens, já fazia referência à desumanização, quando escreveu: “ Não há jardineiros para os homens. Mozart criança irá para a estranha máquina de entortar homens”. E um pouco mais adiante:  ... “é  Mozart assassinado um pouco em cada um desses homens!”  Verdade implacável!

Quantas crianças ceifadas da possibilidade de viver sua infância; quantos adolescentes sem condições de desenvolver seus talentos, quantos adultos com os caminhos de realização pessoal fechados e quantos idosos abandonados.

 É o adoecimento ontológico - adoecimento da natureza humana; tempos de coisificação, tempos de não pessoalidade - da não abertura para o encontro com o outro; onde interesses econômicos e políticos sobrepujam as necessidades humanas; onde há uma intensa dissociação do homem com a natureza e com a sua própria condição humana.

Quantas vezes Herodes, quantas vezes Pilatos, quantas vezes Zaqueu? repetição agônica!

Caro poeta, Vinícius de Moraes,  sei “que é melhor ser alegre do que ser triste”, mas como?
Como ser feliz quando há tantas vidas sobrecarregadas de sofrimentos, que conhecem a miséria e o desespero, geralmente, contra sua vontade?

Como acreditar que um dia a humanidade mudará para melhor?

Mas... é  necessário o exercício da fé na possibilidade humana. É preciso acreditar que temos condições de nos transformar em pessoas melhores e mais saudáveis.

Nesse momento tão traumático é importante que entendamos a comoção global das pessoas como sinal de uma  humanidade ainda viva dentro de cada pessoa e, talvez tenhamos de nos espelhar nos ipês que, na estação mais seca, respondem com uma floração exuberante.

texto: Eliete T. Cascaldi Sobreiro
imagem: internet   Aylan
texto publicado no jornal: O COMBATE (26 de setembro de 2015)




segunda-feira, 21 de setembro de 2015

A ostra e sua pérola

Ostra feliz não faz pérola.
Rubem Alves  
                                             
Querida ostra, sou sua pérola; sou o resultado de sua luta em sobreviver.
Nasci do seu esforço em não morrer, cresci de sua briga por respirar.
Sou aqueles grãozinhos de areia que invadiram, impiedosamente, suas entranhas sem que você pudesse controlar.
Seu nácar protegeu-me e agora sou essa pérola maravilhosa que a todos seduz,  mas que só você soube gestar.
Meu valor é o seu valor; minha beleza espelha sua beleza. Por saber que a vida nos pede luta, destreza e, em alguns momentos, asperezas, reverencio-lhe porque sei do que você foi capaz: exemplo de uma vida de muita dedicação e que mesmo ferida foi capaz de envolver-me de amor.  
Você é uma pequena que se revelou gigante; eu sou sua pérola, sua mais bela criação.
Em seu isolamento me libertou; não me aprisionou como posse e propriedade sua e seu amor é oferenda ao mundo.

Mas a vida é isto: luta e entrega. Agora estou pronta para cumprir o meu destino.
Talvez encontre um ourives generoso que me faça brilhar num lindo colar e, quem sabe, poderei selar a união de um grande amor.

artigo publicado no jornal "O Combate"
texto: Eliete T. Cascaldi Sobreiro
Foto: internet

domingo, 13 de setembro de 2015


“O espírito do amor segreda com tanta timidez”

Leio, releio, torno a ler, incansavelmente, a crônica Imagem” de Cecília Meireles.
Como é possível escrever, com tamanha clareza, uma batalha travada no interior de uma pessoa?
O texto narra a história de uma mulher que encontra, em seu caminho, um gatinho abandonado e doente e, diante dessa situação, é rodeada por uma “assembleia de espíritos”,  que tentam convencê-la  a ignorar tal questão.
Ela vacila, sofre e desperdiça a oportunidade de fazer a diferença na vida de alguém -  seja animal ou gente.
“E só o espírito do amor segredava tímido: ‘Toma-o nas mãos e leva-o contigo!
Verás que, no teu colo, seus olhinhos lacrimosos se fecharão adormecidos; sua fome se esquecerá, suas feridas fecharão... ’ Mas o espírito do amor segreda com tanta timidez” .
Por que será que o espírito do amor reside de um modo tão tímido e fraco em nós, seres humanos?
Por que as pessoas não se sustentam nos três pilares da vida humana: a inteligência, a coragem e o amor ao próximo, citados pelo psicólogo Victor Frankl?
Por que será que, às vezes, é tão difícil amar quem está próximo e  nas situações cotidianas?
Temos o potencial para o amor, com certeza, mas o espírito prático do mundo fala mais alto.
“Senti o desejo de ajudar aquela pessoa, mas sei que não devemos dar dinheiro para um pedinte, pois ele gastará com droga ” .
“Dei um prato de comida para o moço que bateu na minha porta, mas é só dessa vez, pois ele pode se acostumar e voltar sempre”.
 “Chequei em casa com o propósito de ler um livro para meu filho pequeno dormir, mas acabei deitando no sofá e peguei no sono.
“Já cansei de falar para meus filhos irem ver os avós , mas,  você sabe, a juventude é difícil!”
“Sei que preciso ir mais frequentemente  à casa dos meus pais, mas chego tão cansado do trabalho, que acabo desistindo e aí  sinto-me culpado. ”

Cecília Meireles parece ter razão quando diz que “o espírito

 prático é o mais covarde e o mais vil espírito da era

 contemporânea”. Estamos perdendo a pessoalidade e o 

cotidiano não tem sido vivido como um lugar de encontro e

 partilha. Há uma hipertrofia funcional e o ser humano, com 

pouca ressonância da sua afetividade,  está sendo, cada vez

mais, menos humano.


Texto: Eliete T. Cascaldi Sobreiro

Imagem: internet




terça-feira, 1 de setembro de 2015

Minhas vizinhas 


Não importa! Não importa mesmo quem mora mais perto, em que direção, o quanto de distância, ou qualquer outra coisa do gênero.
O que vale é que elas são minhas vizinhas e, com certa frequência, me visitam. Fico a imaginar a casa delas. Dona Tristeza deve morar em uma casa cinza, apertada, janelas bem trancadas e sem alpendre.
Dona Alegria, por sua vez, deve ter uma casa toda ensolarada, com janelas azuis, vasos de flores nas paredes, amplas varandas. Nas varandas, periquitos, passarinhos, cachorro, gato e uma rede bem rendada.
Dona Tristeza, quando me visita, vem com uma mala pesada e vai entrando sem pedir licença. Pouco fala, pouco se explica. É cheia de rodeios, não se revela. Faz questão de avisar que está chegando, pois  arrasta seus chinelos fazendo um barulho irritante. Tem uma peculiaridade: geralmente chega à noite, quando o sol, há muito, já se pôs. É de uma mudez e de uma teimosia...
Prende-me em sua energia, afasta-me de todos e de tudo e leva-me a lugares que sempre evito explorar.
Dona Alegria parece-me mais tímida e é muito respeitosa.  Sempre espera por um sinal, um gesto, um convite para se aproximar. Nunca vem sozinha; sempre lhe acompanha um cheirinho de alecrim, um calor gordinho, uma fita de filó que enlaça nossas mãos. Quando percebo, já estou rodopiando na sala, apaixonada por tudo que existe ao meu redor. São muitas horas, dias, meses em que somente falo bobeiras, sorrio à toa, canto bem alto, telefono para os amigos e faço mil planos com o tempo futuro, que sempre é recebido como um querido amigo.
Não sei como chegar à casa delas:  se viro à esquerda ou à direita do meu coração, apenas elas é que sabem me encontrar. Confesso que, por muito tempo, quis decifrá-las, conhecer suas origens, compreendê-las para dominá-las. Conseguiria, assim, levantar muros bem altos, colocar  câmeras  a fim de detectar e evitar a visita indesejável  da vizinha  Dona Tristeza. Ansiava, no entanto, por descobrir a casa da Dona Alegria, pois construiria uma chaminé que levasse uma fumacinha branca de boas vindas ou, então, o cheiro de um café passado e coado na hora.
Hoje estou em paz. Recebo-as, igualmente, porque sei que as duas têm muito a me ensinar.  Vivo os arredores dessas emoções procurando não afugentá-las, dando a cada visita a maior consideração, pois, somente  assim, tenho a possibilidade de me conhecer melhor e ser a pessoa que hoje sou.

texto: Eliete T. Cascaldi Sobreiro
imagem: internet




sexta-feira, 14 de agosto de 2015



Num tempo não tão distante assim

Num tempo não tão distante assim, viviam  pessoas um tanto estranhas, de um modo um tanto  estranho  também .

Moravam em pequenas cidades e seus hábitos eram por demais diferentes dos nossos - seres modernos e sofisticados - que têm como diversão, após uma jornada de trabalho de dez ou doze horas, colocarem-se em frente à tevê ou computador e distraírem-se até o sono chegar.

Sinceramente, não sei o que aquelas pessoas pensavam sobre a vida; o que sei é que os fatos relatados são a mais pura verdade, mas vou avisando: ”qualquer semelhança é mera coincidência”, afinal, não poderíamos ter parentesco algum com seres tão “ingênuos”.

Nas tardes mais quentes, por volta das dezoito horas (imaginem!), já estavam em casa e, após o jantar em que comiam sem se preocupar com as calorias ingeridas, puxavam as cadeiras e sentavam-se nas calçadas. Às vezes, só a família,  outras vezes, abriam a roda para os vizinhos e  todos juntos ficavam conversando até  bem tarde .

De madrugada, o leiteiro passava entregando o leite e, um pouco mais tarde, o padeiro deixava o pão quentinho. Mas, só após o apito da fábrica é que todos se levantavam. Os homens saíam para trabalhar e as mães preparavam seus filhos para a escola; durante o percurso eram muitos “bom-dia“. Algumas mulheres colocavam-se à janela para um papinho ou para fofocar, outras varriam suas calçadas e outras passavam apressadamente com um saco de roupas na cabeça. Tudo muito estranho realmente! À tarde, geralmente, as mulheres e suas empregadas faziam deliciosos quitutes: bolachinhas, bolos, biscoitos e a vizinha sempre ganhava uma generosa porção. Alguns dias depois, era a vizinha que vinha com outras guloseimas no prato emprestado, pois era  ” falta de educação”  devolvê-lo vazio.

Quando o casal saía a pé para passear, o homem tinha por costume zelar pela proteção da mulher, tomando sempre a posição de ficar do lado da rua e a mulher “guardada” do movimento dos carros ou dos transeuntes.
Não era necessário dinheiro, cheque ou cartão de crédito na compra de alguma coisa; o costume era marcar, pôr na “conta”, ou na caderneta e, no final do mês, pagava-se o que estava devendo, sem juros, imaginem! Nas padarias era costume o proprietário agradecer o pagamento efetuado pelo cliente com alguns doces deliciosos.

Porém, nem tudo era um mar de flores nesse país muito estranho.
As preocupações existiam, pois as ameaças sempre estiveram presentes na vida dos seres humanos, mas eles contavam com mecanismos de proteção infalíveis. Antes de dormir, as crianças olhavam embaixo da cama para verificar se não havia ladrão  e, ao deitar, pediam a bênção do pai e da mãe, após rezarem pedindo a proteção do Anjo da guarda.

Os adultos, quando saíam de casa, escondiam a chave no vaso do terraço, ou na janela, para que seus filhos pudessem entrar quando chegassem.
Os medos, geralmente, eram de assombrações, mulas- sem- cabeça, almas penadas.
Aventura era pular do trampolim na piscina, subir em árvore, escorregar no corrimão das escadas ou jogar amarelinha para chegar ao céu.

É claro que nesse tempo as crianças não eram ”santinhas”, já faziam suas artes, como esconderem-se atrás da porta para observar a avó tirar a dentadura ou usar estilingue para matar passarinhos. Os adolescentes eram terríveis, escondiam-se no banheiro para fumar, as mocinhas, nos quartos, para lerem fotonovelas e, no “escurinho do cinema”, davam beijos apaixonados.

Consideravam “maior barato” mascar chiclete e bala Chita.
Tinham também suas crendices, como deixar o gomo menorzinho da tangerina secando para que Nossa Senhora viesse buscá-lo, e dar um susto na pessoa que estava com soluço. Cantavam seu grito de guerra ao som da Jovem Guarda, “quero que vá tudo para o inferno”, “eu sou terrível”; tocavam com seus violões  a música do Caetano que incitava  todos a saírem “sem lenço e sem documento”, e recebiam muitas outras influências , até do além- mar - como um grupo de jovens cabeludos que faziam as meninas desmaiarem quando apareciam com suas guitarras cantando “Yellow Submarine”.

Realmente estranhos esses habitantes, pois não ficavam como nós assistindo ao Big Brother Brasil e pensando qual participante deve sair da casa e quem merece ganhar o prêmio e pousar nu para as revistas para, finalmente, e conseguir a “fama”. Estavam sempre “gamados”, ou melhor, apaixonados, só queriam dançar de rostinho colado e de olhos fechados.

Estar na moda era ter uma calça ” jeans” desbotada, (para isso, a esfregavam no tanque até ficar bem surrada).
Poderia continuar a relatar muitas outras esquisitices desse povo, mas vou terminar com o que considero o mais estranho e o mais “repugnante“ de todos os fatos.

O tempo, nesse tempo, era diferente, andava mais devagar. Uma mulher que não tivesse um namorado até por volta dos 20 anos ia ficar “pra titia” e, após os cinquenta anos, as pessoas eram consideradas velhas!
Ainda bem que a civilização moderna chegou!


texto: Elliete T. Cascaldi Sobreiro
imagem: Mone



Apontadora de Idéias

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"A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu. (...) Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas... Mas não posso explicar a mim mesma." (Lewis Carroll)

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