terça-feira, 23 de fevereiro de 2010


Os pés do silêncio.
Não me lembro mais os protagonistas desta história, nem quem a contou. Data doinício dos anos 60, quando começou o cerco americano a Cuba. Embora de personalidades diferentes, Che Guevara e Fidel Castro reinavam na cena política com grande e igual liderança. À curiosidade de uma professora que fora a Cuba para um congresso sobre como o povo sentia na prática a diferença entre eles, alguém lhe deu esta resposta: "Quando Guevara fala, nós sentamos para escutá-lo,e quando Fidel fala, nos levantamos para fazer o que ele quer".A primeira vez que contei essa história, uma pessoa concluiu: "Sempre achei mesmo que Fidel Castro era melhor". Fidel incitava à ação. Guevara, ao pensar.Esse comentário sempre me remete ao preconceito vigente na cultura ocidental, que opõe o pensar ao agir, e o desqualifica.Temos um fascínio pela atividade e pela atividade que fabrica resultados tangíveis. Por isso valorizamos tanto a ciência, uma modalidade de pensar que produz teorias, conceitos, instrumentos, remédios, aparelhos, coisas... Já a reflexão, por ser uma forma de pensamento que não produz nada palpável e porque sua atividade é invisível, não só é tida como fútil, mas, também, de certa forma se tornou incompreensível para nós.O pensamento da ciência não é invisível, porque consiste da aplicação de métodos objetivos, com regras de procedimentos, fórmulas de aplicação e análise, que devem ser comuns a todo cientista. O pensar científico é um agir. Já a reflexão,além de não gerar produtos tangíveis, não pode se pautar por regras de raciocínio comuns. Assim como Guevara, na história, ela nos faz parar para ouvir. Ela nos faz suspender nossas idéias e raciocínios corriqueiros, nos desprender deles, nos abrir para uma nova revelação.O que estamos aqui chamando de reflexão coincide com o que os orientais conhecem por meditação.Para os filósofos gregos, todo ato de pensar começa com o que chamavam de espanto. Um acontecimento em que nos sentimos surpreendidos pela revelação de algo, de seu ser. Esse espanto é o que na linguagem diária se diz cair a ficha ou ainda insight e intuição. Quando cai a ficha, ficamos emudecidos, paralisado sem nosso agir, mesmo que por frações de segundo. Ficamos desarmados, pois os raciocínios que fazíamos e as verdades anteriores já não servem mais. Ao mesmo tempo, sentimo-nos iluminados e abertos para essa nova compreensão. Não nos parece ter tido participação ativa em tal descoberta, mas atingidos pela forçade uma revelação. A nós, compete simplesmente deixar a coisa ser como ela é. Sem forçá-la a nada: a um princípio, crença, desejo, necessidade...Esse espanto é um lugar de silêncio. Só o silêncio possibilita o desvelamento do que quer se mostrar a nós. O silêncio é uma clareira, uma luz sob a qual pode se refletir aquilo que antes vivia nas trevas. O espanto, o silêncio, a luz se unem para refletir (daí a reflexão) o quê e como as coisas são. Só depois é que sentiremos a necessidade de sair do silêncio. De ir em busca de palavras para exprimir e comunicar nossa descoberta. Palavras que a guardem e a protejam do esquecimento.Como nossa cultura ocidental não valoriza a reflexão, mas a ação, como ela não autentica o recolhimento, mas a atividade produtiva, é sempre muito difícil entender o que é parar de raciocinar para refletir. É difícil tanto entender o que é esse silêncio, quanto silenciar. Não temos, como os orientais, um ritual culturalmente desenvolvido para nos levar ao silêncio, como a meditação. Temos que nadar contra a maré.Mas o primeiro passo pode ser dado. Trata-se de desmistificar a crença de que só o pensamento produtivo vale alguma coisa. Trata-se de acreditar, como Heidegger,que "...os grandes pensamentos sempre chegam com os pés do silêncio".

Dulce Critelli, professora de filosofia da PUC-SP, autora dos livros "Educação eDominação Cultural" e "Analítica do Sentido" e coordenadora do Existentia -Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana.

Apontadora de Idéias

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"A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu. (...) Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas... Mas não posso explicar a mim mesma." (Lewis Carroll)

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