terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Contardo Calligaris
Volta com pôr do sol . A viagem seduz os viajantes, mas seu desejo é nostalgia do que eles deixaram atrás .
No sábado passado, no aeroporto de Chicago, esperava o voo que me levaria de volta a São Paulo. Diante de mim, uma longa parede de vidro mostrava, além dos aviões estacionados, um pôr do sol glorioso e dilacerante. Por alguma sabedoria (consciente ou não), meus companheiros de espera estavam quase todos sentados de costas para a janela. Alguns poucos, pela posição de seus assentos, teriam condição de contemplar o pôr do sol, mas não levantavam os olhos de seu notebook.
Oscar Wilde afirmava que o pôr do sol só passou a existir com as pinturas de William Turner, no começo do século 19; era um jeito de dizer que a natureza está lá desde sempre, mas é a arte que nos ensina a enxergá-la. Concordo. E há outras razões pelas quais o pôr do sol é uma experiência especificamente moderna. Nos últimos 300 anos, atribuímos mais importância à existência individual de cada um do que à vida de grupos, tribos e nações, ou seja, salvo momentos vacilantes de fé em ressurreição ou reencarnação, nossa morte nos parece acabar com tudo o que importa.
Somos, portanto, especialmente sensíveis ao fim do dia, cujo espetáculo acarreta consigo a lembrança dolorosa do fim de nossa jornada, que se aproxima. A psicopatologia reconhece, aliás, a existência, em alguns indivíduos, de variações sazonais do humor: depressão no outono e no começo do inverno e, às vezes, exaltação maníaca na primavera. Pode ser que a alternância das estações, sobretudo onde elas são mais marcadas, longe do Equador e dos trópicos, produza mudanças no metabolismo. Mas pode ser, simplesmente, que a alternância das estações lembre o ciclo de nossa vida, e o outono seja o equivalente anual do fim da tarde de cada dia.
No caso do pôr do sol de sábado, em Chicago, visto da sala de espera de um aeroporto, era como se a iminência da viagem tornasse a experiência mais triste. Por quê? Há um quadro de Jean-François Millet, que todo mundo conhece, “O Ângelus“, pintado em 1859.
Nele, um casal de camponeses, no meio da lavoura, ouve os sinos do ângelus vespertino (à distância, vê-se o campanário de uma igreja). Os sinos dizem que é a hora de rezar e que o dia acabou. Deveria emanar do quadro uma sensação intensa de paz: seu ofício cumprido, o casal logo voltará para o calor pobre, mas digno, de seu lar. Mas esse retrato de uma vida simples e reta sempre foi, para mim (e não só para mim), estranhamente aflitivo. Acontece que o ângelus vespertino é um toque de paz só para quem tem uma casa para a qual voltar. Para os outros, é o sinal melancólico de uma perda sem remédio. Tudo bem, viajei muito. Várias vezes, ao longo da vida, mudei de língua e país, mas o que importa aqui não são os acidentes de minha história.
A modernidade se define pela viagem, pela decisão de não aceitar que o lugar onde nascemos seja nosso destino -por exemplo, pela vontade de deixar o campo e ir para a cidade. É assim desde o século 13 ou 14, quando a gente começou mesmo a circular -primeiro pela Europa, depois pelos mares e por terras incógnitas e agora pelos céus e mundo afora. Na “Divina Commedia” (que é uma enciclopédia da modernidade incipiente), Dante descreve assim o fim da tarde (minha tradução em prosa de “Purgatório, 8, 1-6″): “Já era a hora em que o desejo volta aos navegantes, e seu coração é enternecido pela lembrança do dia em que disseram adeus a seus doces amigos; é também a hora que fere de amor o novo viajante, se ele ouve de longe um sino que parece chorar o dia que está morrendo.” Pelo gênio de Dante, o desejo dos navegantes não é, como se esperaria, o anseio de novas terras no horizonte de sua viagem. Claro, a viagem os seduz, mas seu desejo é nostalgia do que eles deixaram atrás, do que perderam por se tornarem viajantes. E perderam o quê? Sobre que perdas se funda a subjetividade moderna -a nossa, livre e andarilha? Este é o custo básico da liberdade e da autonomia que prezamos acima de tudo: a gente renuncia, antes de mais nada, ao calor do lar – aquele lar que nos esperaria ao fim de cada dia, se tivéssemos ficado no campo, com os camponeses de Millet. Alguém dirá: que drama é esse? Perde-se a casa dos pais, mas a gente faz outra. Não tem um ditado que diz: “Quem casa quer casa?”. Tem, sim, e, justamente, uma razão pela qual casar-se é tão complicado, é que a gente casa porque quer não “uma” casa, mas “aquela” casa, a que a gente perdeu e nunca vai reencontrar. Enfim, tudo isso escrito enquanto, justamente, volto para casa.
Folha Equilíbrio/janeiro/2010





















Apontadora de Idéias

Minha foto
São Paulo, Brazil
"A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu. (...) Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas... Mas não posso explicar a mim mesma." (Lewis Carroll)

Arquivo do blog