terça-feira, 30 de outubro de 2012

 
 

Ontem à noite, enquanto eu dormia,
sonhei – maravilhosa ilusão! –
que uma corrente jorrava
em meu coração.
Eu disse: por qual canal secreto,
oh água, você vem a mim,
água de uma vida nova
que eu nunca bebera antes?

Ontem à noite, enquanto eu dormia,sonhei – maravilhosa ilusão! –
que havia uma colméia

bem dentro do meu coração.
E as abelhas douradas
faziam favos brancos
e mel doce
das minhas velhas imperfeições.

Ontem à noite, enquanto eu dormia,
sonhei – maravilhosa ilusão! –
que um sol ardente brilhava
dentro do meu coração.
Era ardente porque sentia calor
como em uma fornalha,
e sol porque brilhou
e trouxe lágrimas aos meus olhos.

Ontem à noite, enquanto eu dormia,
sonhei – maravilhosa ilusão! –
que era Deus quem eu tinha
bem dentro do meu coração.



[Antonio Machado]

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Solidão crônica

Drauzio Varella

O isolamento social aumenta o risco de morte tanto quanto o cigarro, e mais do que o sedentarismo ou a obesidade.
A relação entre vida solitária, doenças cardiovasculares, depressão e incidência de infecções foi demonstrada em mais de 100 estudos epidemiológicos publicados a partir dos anos 1980. Esses estudos, no entanto, não explicam os mecanismos através dos quais o isolamento aumenta a mortalidade.
Nos últimos 10 anos, os efeitos biológicos da solidão se tornaram mais conhecidos graças ao trabalho inovador de um grupo da Universidade de Chicago, dirigido por John Cacciopo. Por meio de questionários para avaliar o grau de isolamento social dos participantes, de testes psicológicos e de exames laboratoriais, o grupo de Chicago concluiu que, embora episódios passageiros de solidão sejam inevitáveis e desprovidos de repercussões orgânicas relevantes, quando o isolamento persiste de forma crônica suas consequências se tornam especialmente nocivas.
Algumas pessoas que vivem isoladas não se sentem solitárias, enquanto outras têm a sensação de estar sozinhas apesar da vida social intensa. A percepção subjetiva da solidão é mais importante para o bem-estar individual do que qualquer medida objetiva do número de interações sociais.
Numa escala criada para avaliar o grau de isolamento pessoal, aqueles com escore mais alto apresentam alterações bioquímicas sugestivas de que seus dias são conturbados. Neles, por exemplo, estão elevadas as concentrações urinárias de cortisol e epinefrina, moléculas associadas aos níveis de estresse.
Esse dado ajuda a explicar por que os solitários crônicos ficam estressados diante de situações que outros enfrentam com naturalidade, como falar em público ou conversar com desconhecidos.
Na evolução de nossa espécie, a ansiedade provocada pela solidão funcionou como sinal de alerta para que o indivíduo procurasse a proteção do grupo. Num mundo povoado por predadores, que chance de sobrevivência teria um animal fraco como nós perambulando sozinho?
Nesse sentido, o sofrimento que a solidão traz é faca de dois gumes: de um lado, colabora para a adaptação ao meio, porque favorece o agrupamento; de outro, prejudica o organismo quando se torna crônico.
O grupo de Chicago investigou as repercussões imunológicas do isolamento prolongado. Nos solitários estão mais ativos os genes que promovem inflamação, enquanto aqueles envolvidos na resposta imune contra os vírus exibem atividade diminuída. Por essa razão, eles apresentam maior susceptibilidade às infecções virais (da gripe ao HIV) e à doença cardiovascular, enfermidade associada aos processos inflamatórios.
A solidão crônica interfere com a qualidade do sono, é causa de fadiga e reduz a sensação de prazer associada a atividades recreativas. Para agravar o isolamento, os já solitários tendem a reagir negativamente aos estímulos e a desenvolver impressões depreciativas a respeito das pessoas com as quais interagem.
A avaliação das funções cerebrais por meio de ressonância magnética funcional mostra que a solidão crônica afeta o córtex pré-frontal, área localizada na parte da frente do cérebro, crucial para a tomada de decisões racionais, como as de planejar o melhor caminho para o trabalho ou a hora de ir ao banco.
O comprometimento do córtex pré-frontal ajuda a entender por que as pessoas que se sentem isoladas correm mais risco de comer mal, fumar, abusar do álcool, ganhar peso e levar vida sedentária.
Estudos com irmãos gêmeos revelam que a solidão crônica não depende exclusivamente das características do meio, mas apresenta aspectos hereditários. É como se existisse um “termostato genético” para a capacidade de lidar com a solidão, ajustado em níveis diferentes em cada um de nós. Isso não quer dizer que nossos genes nos condenariam à vida solitária, mas que estão por trás da intensidade da dor sentida quando estamos sós.
Com o celular e a internet criamos possibilidades ilimitadas de interações sociais; num único dia, podemos entrar em contato com um número de pessoas que nossos antepassados levariam anos para conhecer. Contraditoriamente, o contingente dos que se queixam da falta de alguém com quem compartilhar sentimentos íntimos aumenta em todos os países.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Affonso Romano de Sant’Anna

A poesia exige um silêncio abismal. E isto pode levar à vertigem.

Ou: a poesia é quando se está à beira de si mesmo. Cair em si, sem se perder, ou achar-se do outro lado de si mesmo. Isto exige perícia. Pois há que ouvir sons, ruídos, mensagens que fluem também do lado de fora, no exterior.
 
 
Certa vez fiquei duas horas sobre as pedras do Arpoador, à toa, apenas ouvindo o mar. O marulhar do mar. O marulhar da alma. É preciso uma certa ousadia para se ouvir o nada. O nada é onde tudo começa. É de onde surge o a voz da poesia.Estranha relação entre o eu e o mundo. O pessoal e social. Há que haver uma orquestração. Não é de muita valia ficar chorando pelos cantos. O choro pessoal ainda não é poesia.Tem que haver algo mais: converter-se em coro. Por isto a voz do poeta é uma voz de utilidade pública. Quando não sabemos como dizer certas coisas, pedimos a voz do poeta emprestada e entoamos uma verdade simbólica.Rainer Maria Rilke, poeta alemão, pediu emprestado um castelo para, isolado, ouvir melhor o que os querubins lhe diziam.
Victor Hugo foi para as ruas e barricadas ouvir a voz de seu tempo.
Rimbaud, de repente, calou-se para sempre. Ficou mudo. Um zumbi perdido nos desertos africanos. Sem voz.
Quando Orfeu soava seus versos as bestas mais ferozes se acalmavam e até as pedras o entendiam. Como cada pássaro tem um canto especial, o poeta tem que descobrir qual a sua voz interior. Não se pode cantar com a voz do outro. Claro que alguns, na literatura e na vida, começam imitando o canto alheio. É um aprendizado.
Camões ouvia Virgilio e Homero. João Cabral de Melo Nelo começou ouvindo Carlos Drummond. Na música popular a mesma coisa: Dalva de Oliveira gerou Angela Maria. Mas João Gilberto não pode cantar como Orlando Silva ou Nelson Gonçalves. Ou vice-versa.
Cada qual no seu canto. Na sua voz.
E já que ouvir a voz interior é um risco, alguns a ouvem, e desesperam. Outros tapam os ouvidos. Enchem sua vida de ruídos espetaculares.
O músico ( como o poeta) faz falar o espaço em branco. Faz falar o indizível. Pausa é música. Música é pausa no ruído cotidiano. Música é a salvação do ruído.E
como esse mundo ficou barulhento, meu Deus! E se poesia é voz oculta sob a prosa, em certas épocas a voz do cantor e do poeta são perigosas. Eles fazem falar o silêncio, o que foi calado, reprimido. As ditaduras nos dão estranhas licões de poesia.Repito: poesia exige um silêncio abismal.
Ler, escrever ou ouvir poesia é abismar-se
.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

 
A Velha Amiga
Conversávamos sobre saudade. E de repente me apercebi de que não tenho saudade de nada. Isso independente de qualquer recordação de felicidade ou de tristeza, de tempo mais feliz, menos feliz. Saudade de nada. Nem da infância querida, nem sequer das borboletas azuis, Casimiro.
Nem mesmo de quem morreu. De quem morreu sinto é falta, o prejuízo da perda, a ausência. A vontade da presença, mas não no passado, e sim presença atual.
Saudade será isso? Queria tê-los aqui, agora. Voltar atrás? Acho que não, nem com eles.

 

A vida é uma coisa que tem de passar, uma obrigação de que é preciso dar conta. Uma dívida que se vai pagando todos os meses, todos os dias. Parece loucura lamentar o tempo em que se devia muito mais.Queria ter palavras boas, eficientes, para explicar como é isso de não ter saudades; fazer sentir que estou expirimindo um sentimento real, a humilde, a nua verdade. Você insinua a suspeita de que talvez seja isso uma atitude.

Meu Deus, acha-me capaz de atitudes, pensa que eu me rebaixaria a isso? Pois então eu lhe digo que essa capacidade de morrer de saudades, creio que ela só afeta a quem não cresceu direito; feito uma cobra que se sentisse melhor na pele antiga, não se acomodasse nunca à pele nova. Mas nós, como é que vamos ter saudades de um trapo velho que não nos cabe mais?
Fala que saudade é sensação de perda. Pois é. E eu lhe digo que, pessoalmente, não sinto que perdi nada. Gastei, gastei tempo, emoções, corpo e alma. E gastar não é perder, é usar até consumir.
E não pense que estou a lhe sugerir tragédias. Tirando a média, não tive quinhão por demais pior que o dos outros. Houve muito pedaço duro, mas a vida é assim mesmo, a uns traz os seus golpes mais cedo e a outros mais tarde; no fim, iguala a todos.

Infância sem lágrimas, amada, protegida. Mocidade - mas a mocidade já é de si uma etapa infeliz. Coração inquieto que não sabe o que quer, ou quer demais.

Qual será, nesta vida, o jovem satisfeito? Um jovem pode nos fazer confidências de exaltação, de embriaguez; de felicidade, nunca. Mocidade é a quadra dramática por excelência, o período dos conflitos, dos ajustamentos penosos, dos desajustamentos trágicos. A idade dos suicídios, dos desenganos e, por isso mesmo, dos grandes heroísmos. É o tempo em que a gente quer ser dono do mundo - e ao mesmo tempo sente que sobra nesse mesmo mundo. A idade em que se descobre a solidão irremediável de todos os viventes. Em que se pesam os valores do mundo por uma balança emocional, com medidas baralhadas; um quilo às vezes vale menos do que um grama; e por essas medida, pode-se descobrir a diferença metafísica que há entre uma arroba de chumbo e uma arroba de plumas.

Não sei mesmo como, entre as inúmeras mentiras do mundo, se consegue manter essa mentira maior de todas: a suposta felicidade dos moços. Por mim, sempre tive pena deles, da sua angústia e do seu desamparo. Enquanto esta idade a que chegamos, você e eu, é o tempo da estabilidade e das batalhas ganhas. Já pouco se exige, já pouco se espera. E mesmo quando se exige muito, só se espera o possível. Se as surpresas são poucas, poucos também os desenganos.
A gente vai se aferrando a hábitos, a pessoas e objetos. Ai, um um dos piores tormentos dos jovens é justamente o desapego das coisas, essa instabilidade do querer, a sede do que é novo, o tédio do possuído.

E depois há o capítulo da morte, sempre presente em todas as idades. Com a diferença de que a morte é a amante dos moços e a companheira dos velhos.
Para os jovens ela é abismo e paixão. Para nós, foi se tornando pouco a pouco uma velha amiga, a se anunciar devagarinho: o cabelo branco, a preguiça, a ruga no rosto, a vista fraca, os achaques. Velha amiga que vem de viagem e de cada porto nos manda um postal, para indicar que já embarcou.
(Crônica publicada no jornal "O Estado de São Paulo" - 13/01/2001)

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

 
Esta crônica me sensibiliza   profundamente, principalmente, neste momento da minha vida quando vivo de perto o envelhecimento de pessoas queridas .
 
Apenas um cão

Cecília Meireles

Subidos, de ânimo leve e descansado passo, os quarenta degraus do jardim – plantas em flor, de cada lado; borboletas incertas; salpicos de luz no granito eis-me no patamar. E aos meus pés, no áspero capacho de coco, à frescura da cal no pórtico, um cãozinho triste interrompe o seu sono, levanta a cabeça e fita-me. É um triste cãozinho doente, com todo o corpo ferido; gastas, as mechas brancas do pêlo; o olhar dorido e profundo, com esse lustro de lágrima que há nos olhos das pessoas muito idosas.

Com grande esforço, acaba de levantar-se. Eu não lhe digo nada; não faço nenhum gesto. Envergonho-me haver interrompido o seu sono. Se ele estava feliz ali, eu não devia ter chegado. Já que lhe faltavam tantas coisas, que ao menos dormisse: também os animais devem esquecer, enquanto dormem... Ele, porém, levantava-se e olhava-me. Levantava-se com a dificuldade dos enfermos graves, acomodando as patas da frente, o resto do corpo, sempre com os olhos em mim, como à espera de uma palavra ou de um gesto. Mas eu não o queria vexar nem oprimir. Gostaria de ocupar-me dele: chamar alguém, pedir-lhe que o examinasse, que receitasse, encaminhá-lo para tratamento... Mas tudo é longe, meu Deus, tudo é tão longe. E era preciso passar. E ele estava na minha frente, inábil, como envergonhado de se achar tão sujo e doente, com o envelhecido olhar numa espécie de súplica.

Até o fim da vida guardarei seu olhar no meu coração. Até o fim da vida sentirei esta humana infelicidade de nem sempre poder socorrer, neste complexo mundo dos homens. Então, o triste cãozinho reuniu todas as suas forças, atravessou o patamar, sem nenhuma dúvida sobre o caminho, como se fosse um visitante habitual, e começou a descer as escadas e as suas rampas, com plantas em flor de cada lado, as borboletas incertas, salpicos de luz no granito, até o limiar da entrada. Passou por entre as grades do portão, prosseguiu para o lado esquerdo, desapareceu.

Ele ia descendo como um velhinho andrajoso, esfarrapado, de cabeça baixa, sem firmeza e sem destino. Era, no entanto, uma forma de vida. Uma criatura deste mundo de criaturas inumeráveis. Esteve no meu alcance, talvez tivesse fome e sede: e eu nada fiz por ele; amei-o, apenas, com uma caridade inútil, sem qualquer expressão concreta. Deixei-o partir, assim, humilhado, e tão digno, no entanto; como alguém que respeitosamente pede desculpas por ter ocupado um lugar que não era o seu. Depois pensei que nós todos somos, um dia, esse cãozinho triste, à sombra de uma porta. E há o dono da casa e a escada que descemos, e a dignidade final da solidão.

 

terça-feira, 16 de outubro de 2012

às vezes nada melhor do que um cantinho que nos convida a viver outras vidas.

 

há momentos em que é preciso descansar a alma.

olhar o céu, olhar a àgua, olhar a terra e mergulhar na vida.


às vezes esquecemos que o que é bom está tão perto de nós.

terça-feira, 9 de outubro de 2012


Um dia é preciso parar de sonhar e de algum modo partir...
É melhor tomar um caminho, desembarcar dos sonhos e tomar uma atitude.
 Mil vezes a perspectiva de enfrentar a pior tempestade do que as normais calmarias sem rumos, sem ir a lugar nenhum.
 Barcos de verdade não navegam por acaso...
Não existem atividades humanas sem riscos...
 O risco maior da grande viagem está na capacidade de se preparar...
 O que importa na verdade, é o material de que é feita a vontade, e não o barco...
No mar, conta mais, infinitamente mais que a experiência, a iniciativa, o respeito e a capacidade de aprender.
 É preciso ir além de mares demarcados...
 Uma travessia não termina em qualquer lugar, mas, num ponto preciso, escolhido e alcançado.
 E, enquanto não se toca esse ponto, travessia nenhuma existe".
 (Fernando Pessoa)

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Gostei muito do livro:
 

"O desejo havia me transformado em um caçador implacável em busca de pistas, paronóico, romântico, lendo significados em tudo.
Mesmo assim, fosse qual fosse minha impaciência com os rituais da sedução, eu estava consciente de que o mistério dava a Chloe um encanto especial. Os mais atraentes não são aqueles que nos permitem que os beijemos de imediato)  logo nos sentimos desinteressados) ou aqueles que nunca permitem que os beijemos (logo os esquecemos), mas aqueles que sabem ministrar cuidadosamente diferentes doses de esperança e desespero".

Apontadora de Idéias

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São Paulo, Brazil
"A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu. (...) Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas... Mas não posso explicar a mim mesma." (Lewis Carroll)

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