GIRO DE IDEIAS TEM COMO OBJETIVO "POLINIZAR" O CORAÇÃO E O PENSAMENTO DE QUEM POR AQUI PASSA.
quinta-feira, 10 de maio de 2012
Crônica de Martha Medeiros
"Dentro de mim não é um lugar para se viver"
A Maria Rezende
é uma poeta carioca que recentemente lançou um livro encantador chamado
"Bendita palavra", onde, entre tantos versos, fui surpreendida por
este: "Dentro de mim não é mais um bom lugar para se viver".
Este verso reflete uma necessidade de se exorcizar, um pânico de não detectar
dentro de si um abrigo, uma quentura, um espaço aprazível onde caibam todos os
nossos fantasmas. A voz que fala através da poeta tem vontade de expulsar-se de
si própria, já não reconhece um sol interno - isso sou eu que estou
interpretando, Maria fala mais bonito: "Teve um tempo em que esse dentro
parecia com o fora/era um ótimo lugar pra uma moça como eu era". Aí a personagem do poema virou uma moça diferente, hospedou em si uma criatura
arrebentada, ferida, nauseabunda, e danou-se, agora ela não é mais um bom lugar
para se viver.
Explica tanta coisa, esse sentimento.
Explica a gente não conseguir se relacionar bem com os outros, explica autoflagelo,
explica engordar ou emagrecer além do razoável, explica suicídio, explica nosso
estrangeirismo mesmo quando sozinhos - ou principalmente na solidão. Como lidar
com esse despatriamento, para onde levar nossa mochila, nossa bagagem, nosso eu
mesmo pra se instalar em outro corpo? Nascer de novo não dá.
Ou até dá. Até dá.
De vez em quando é necessário a gente se perguntar se dentro de nós é um bom
lugar para se viver. Depois de ler Maria Rezende eu tenho me perguntado isso. E a
resposta sem nenhum charme intelectual, sem nenhuma espécie de autoaversão, sem
nenhuma inclinação underground, ou seja, da forma mais simplória, é que sim, eu
sou um bom lugar para se viver.
Dentro de mim há pensamentos demais, o que torna tudo meio apertado, mas tenho
tentado dar uma arrumada nessas idéias para que cada uma fique na sua gaveta.
Há também sentimentos demais, mas de forma alguma vou expulsá-los, deixo que
circulem à vontade pelo meu corpo. Dentro de mim as estações são bem definidas:
verão é verão, inverno é inverno. Toca música aqui dentro quase o tempo todo, e
há uma satisfação secreta que precisa se manter secreta para não passar por
boba. Há crianças e adultos dentro de mim, todos da mesma idade. Aqui dentro
existe uma praia e uma montanha coladas uma na outra, parece até Rio de
Janeiro, só que os tiroteios são raros. O último bangue-bangue emocional que
metralhou minha alma faz quase um ano. Dentro de mim estão muitas lágrimas que
não foram choradas pra fora e muitos sorrisos que, de tão íntimos, também guardei.
Dentro de mim, às vezes, são produzidas algumas cenas sofisticadas e roteiros
de filme B. Como não gostar de viver aqui dentro?
"A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu. (...) Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas... Mas não posso explicar a mim mesma."
(Lewis Carroll)