
“Era uma vez um rei que chamava a si os tesouros da Terra, mas apesar disso não se sentia feliz. Então, um dia, mandou chamar seu cozinheiro predileto e disse-lhe: “Por muito tempo tens trabalhado para mim com fidelidade e tens-me servido à mesa as mais esplêndidas iguarias.
Porém, desejo agora uma última prova do teu talento.
Deves fazer-me uma omoleta de amoras igual àquela que saboreei há 50 anos, em minha mais tenra infância.
Naquela época meu pai travava guerra contra seu perverso inimigo a oriente.
Este acabou vencendo, e tivemos de fugir.
E fugimos, pois, noite e dia, meu pai e eu, através de uma floresta escura, onde afinal acabamos por nos perder.
Aí morava uma velhinha que amigavelmente convidou-nos a descansar, tendo ela própria, porém, ido ocupar-se do fogão.
Não muito tempo depois estava à nossa frente a omeleta de amoras!
Mal tinha levado à boca o primeiro bocado, senti-me maravilhosamente consolado, e uma nova esperança entrou no meu coração.
Já era rei quando mais tarde mandei procurá-la, vasculhei todo o reino, não encontrei nem a velha nem qualquer outra pessoa que soubesse preparar a omeleta de amoras.
Agora, quero que atendas este meu último desejo: faz-me aquela mesma omeleta de amoras!
Se o cumprires, farei de ti meu genro e herdeiro de meu reino.
Mas, se não me contentares, deverás morrer”. Então o cozinheiro disse: “Majestade, podeis chamar logo o carrasco.
Conheço, é verdade, o segredo da omeleta de amoras e todos os seus ingredientes, desde o trivial agrião até o nobre tomilho.
Sei empregar todos os condimentos.
Sem dúvida, há também o verso mágico que se deve recitar ao bater os ovos, e sei que o batedor de madeira de buxo deve ser sempre girado num só sentido.
Contudo, ó rei, terei de morrer!
Minha omeleta não vos agradará ao paladar, jamais será igual àquela que vos veio pelas mãos da velhinha.
Faltará o perigo da batalha e o seu picante sabor, a proximidade do pai na floresta desorientada, a emoção e a vigilância do fugitivo perdido.
Não será omoleta comida com o sentido alerta do perseguido.
Não terá o descanso no abrigo estranho e o calor do fogo amigo, a doçura da inesperada hospitalidade de uma velha.
Não terá o sabor do presente incomum e do futuro incerto”.
Assim falou o cozinheiro.
O rei, porém, calou um momento e não muito depois consta haver dispensado dos serviços reais o cozinheiro, rico e carregado de presentes”.
Folha de São Paulo, Folhetim-22/01/84
O desejo humano , tal como entendido pela psicanálise, não é a mesma coisa que a necessidade.
O desejo é da ordem puramente psíquica, é como tal pertence a ordem do simbólico.
O desejo é a enunciação da falta e sendo singular produz a solidão.

Sua satisfação é sempre parcial e realiza-se no movimento do querer mais e mais.
Essa história nos diz que ninguem é capaz de satisfazer nossos desejos, e buscarmos incessantemente o Outro como aquele que vai nos trazer a completude e a felicidade tem como resultado a frustração.