quinta-feira, 5 de maio de 2011

Paul Cezanne



A desventura pode até ser terrível, mas console-se: se você for vítima ou culpado, você vai aparecer na foto.
Vários leitores pediram que eu insistisse no mesmo tema da semana passada: por que a culpa é um de nossos jeitos preferidos para dar sentido ao mundo?



Como é possível que, diante de uma desgraça, o fato de sentirmo-nos culpados constitua, para nós, uma espécie de conforto?


Todos conhecemos as expressões usuais pelas quais, por exemplo, Fulano ou Fulana podem eles mesmos admitir que "fizeram um câncer" -e não foi porque fumaram dois maços de cigarros por dia durante a vida inteira, nem porque, verão após verão, deitaram no sol para bronzear a pele, sem protetor algum.



Nada disso: a expressão "fazer uma doença", em geral, indica outro tipo de responsabilidade. Mas vamos devagar.Não é raro que a primeira reação de quem recebe um diagnóstico maligno consista em procurar uma intenção escusa da qual ele poderia ser a vítima. Envenenaram a água da cidade; o ar é repleto de resíduos daquela fábrica cuja chaminé solta fumaça a cada noite; há um dentista que tem consultório acima do meu, ninguém sabe quantos raios-x ele faz por dia, será que ele isolou sua sala do jeito certo ou será que a radiação chega até aqui?



Na mesma linha, Deus ou o diabo podem ser os mandantes de minha desgraça. Deus, porque ele quer colocar à prova minha fé, como ele já fez com Jó. O diabo, porque ele é príncipe aqui na terra e todo o mal vem dele.



Essas reações parecem ter o mesmo propósito dos delírios paranoicos: elas acusam um agente externo (Deus, o diabo ou os vizinhos) para que o mundo ganhe sentido, ou seja, no caso, para que o mal que se abate sobre a gente tenha uma explicação. "Adoeci porque alguém me quis mal": graças a essa crença, não sofro por acidente nem por acaso, mas sou vítima de uma vontade que me castiga ou me testa. O que se ganha com isso? Antes de responder, mais uma observação.



Em geral, quando temos intenções que preferimos esconder de nós mesmos, uma boa solução é atribui-las a outros. Portanto, não seria de todo estranho que a gente acusasse Deus e todo mundo por males que nós mesmos causamos.Desse ponto de vista, reconhecer que nós somos os primeiros culpados de nossa desventura seria um progresso. Algo assim: até que, enfim, o cara se tocou, não foi Deus, não foi o demônio, nem a usina química no morro atrás da casa, foi ele mesmo que "fabricou" sua doença.


Geralmente, a explicação deste "fabricar sua doença" passa quer seja por uma poética do estouro (emoções contidas e silenciadas tiveram que se expressar e explodiram numa neoplasia), quer seja por uma poética da erosão (as mesmas emoções reprimidas foram atacando o corpo como a famosa gota que cava a pedra, não pela força, mas caindo repetidamente).



Tanto faz: o que me importa dizer é que entre acusar a Deus e todo mundo e acusar a nós mesmos não há progresso algum.A posição de vítima (Deus, o diabo e os vizinhos me querem mal) e a posição de culpado (eu fabriquei minha doença porque meu inconsciente é meu verdadeiro inimigo), ambas são chamadas a "explicar" o mal que nos assola, porque, aparentemente, preferimos sofrer de um mal explicado a sofrer de um mal aleatório. Por que isso?



Simples: tanto se eu for a vítima escolhida por Deus e pelo mundo quanto se eu for a vítima de mim mesmo, apesar de doente, eu me manterei nas luzes da ribalta.



Em suma, agimos e pensamos como se nosso sofrimento pudesse ser aliviado por uma compensação narcisista: a desventura é terrível, mas, ao menos, como vítima ou como culpado, sairei na foto. Não é uma consolação?Talvez. Mas é uma consolação custosa, porque, nessa foto em que sou vítima ou culpado, a desventura é o que me define, o que me resume.



De fato, qualquer sofrimento seria um fardo mais leve se ele pudesse aparecer como quase sempre é: um mal sem sentido, que não faz parte de nenhum plano e não é fruto de nenhuma vontade escusa, nem da nossa.



Teste de boa saúde: estamos bem quando podemos ser atropelados sem ter que considerar que alguém tentou nos matar ou que nós mesmos nos jogamos nas rodas do caminhão, empurrados por impulsos inconfessáveis.Um amigo querido morreu de um câncer que ele não fabricou e que não lhe foi imposto nem por Deus nem pelo diabo nem pelos vizinhos. Ele dizia: os males reais são suficientemente graves para que a gente não se esforce para lhes acrescentar mil sentidos imaginários.

8 comentários:

  1. Como disse o poeta (Drummond?): O mundo carece de explicação...
    Um abraço

    ResponderExcluir
  2. Interessante esse artigo...
    Há pessoas que parecem curtir suas doenças e fazer delas o ponto principal de seus dias...
    Outras nem dão bola...

    Questão de estar ou não bem consigo mesmo ajuda...beijos,lindo fds e tudo de bom,chica

    ResponderExcluir
  3. Bom dia,Eliete!!

    Adorei seu post!!É de utilidade pública!!
    A maioria gosta de se enganar,preferem pensar que a culpa sempre é do outro...espero que um dia isso mude...
    Mas só somos responsáveis pelo modo que vivemos a nossa própria vida...cada um aprende de uma maneira...
    Quero convida-la para conhecer meu blog novo.
    Se puderes passa,lá? Obrigada.
    floresnojardimdavida.blogspot.com

    ResponderExcluir
  4. Na minha opinião "culpa" é uma coisa...responsabilidade no processo é outra. Não fabricamos nossas doenças, mas criamos (baseado nas nossas crença interiores) uma ambiente propício para que ela se manifeste. A dor não é punição e sim um aviso de que "algo pede por mudança"...esse é o processo evolutivo. A Evolução acontece ou pelo amor ou pela dor...não tem como escapar!hehe
    Adorei o post! bjssssssss

    ResponderExcluir
  5. Linda amiga!

    Hoje vim aqui pra te desejar um lindo dia das mães!
    Que seu domingo seja absolutamente perfeito!

    Beijo no seu lindo coração!

    ResponderExcluir
  6. Viver não tem sentido e é muito perigoso...
    Dispensa artifícios culposos da nossa mente, pela própria 'crua e cruel' realidade...

    Texto chocante do Calligaris!

    Beijos e uma boa semana!!

    ResponderExcluir
  7. OI Eliéte, bela postagem, quero te desejar um feliz dia das mães.tenha uma ótima semana.bjs....

    ResponderExcluir
  8. Bom dia,Eliete!!

    Como foi seu dia das Mães?! Espero que tenha sido cheio de amor e carinhos!!!
    Beijos pra ti!!
    Bom início de semana!

    ResponderExcluir

Apontadora de Idéias

Minha foto
São Paulo, Brazil
"A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu. (...) Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas... Mas não posso explicar a mim mesma." (Lewis Carroll)

Arquivo do blog