terça-feira, 2 de junho de 2009


A MÁSCARA DO MEU ROSTO

Nélida Pinõn
ESTOU PRESTES A SAIR DE CASA.Abro o armário.Urge escolher a máscara, das muitas que tenho, para ir á rua.Com ela enfrentarei os dissabores e as aventuras do meu cotidiano.Afinal, ela é a ponte que cruzo para alcançar os demais seres.Minhas máscaras acomodam-se na prateleira, em meio às bolsas.Todas parecidas, elas diferenciam-se entre si apenas em detalhes imperceptíveis aos olhos alheios.São raros aqueles que surpreendem a natureza da minha máscara.Reconhecem que rio, choro, ou encontro-me na iminência de velejar para um hemisfério longíquo,de onde, quem sabe, não regresso tão cedo. Enquanto muitos confessam, em consonância com triste adágio, que suas vidas são um livro aberto, nada tenho a esconder dos homens, sou justo o contrário, não sei viver sem as máscaras, que me protegem, são a salvaguarda da minha liberdade.E ainda que se provem elas em muitos momentos incapazes de me proteger, não importa. Afinal, a vida não permite previsões, lances antecipados.para enfrentar certos conflitos, seria necessário revestir-se da máscara de ferro, que traz consigo o sopro da morte.
Duvido que alguém prescinda do uso da máscara. Ande inadvertido pelo mundo, oferecendo o rosto cru dos seus sentimentos.Desajeitado e pobre, quando poderia dispor, a qualquer hora, de mais de mil máscaras, capazes todas de impulsionar o espetáculo humano, de corresponder a natureza secreta do seu dono, de encharcar de vinagre e esperança qualquer coração. As máscaras que levo pelas manhãs coladas à pele têm recursos múltiplos.Fogem ao meu controle.Fazem-se de gestos, do franzir da testa, das rugas em torno dos olhos, dos sulcos próximos à comissura dos lábios.Integram um sistema que esconde e revela ao mesmo tempo quem sou.Desgovernada, inescrupulosa, cheia de razão e de fúria, padecendo como os demais, da enfermidade dos sentimentos.E que embora esteja sob a guarda das máscaras, não está a salvo dos que nos observam com luneta.Donos de um olhar que semeia,a respeito de quem seja, uma versão contrária à que queríamos.As máscaras, sem dúvida, ajudam-me a viver. Levam-me às cerimônias solenes, onde confirmo a educação recebida.Acompanham-me nos momentos em que sangro, a despeito da minha aparente indiferença.E são elas ainda que me perguntam qual das máscaras usar em determinada festa. Acaso a máscara que engendrei ao longo dos anos, e que me serve como um chinelo velho? Aquela que é dissimulada, cujo desassombro asusta-me, pois revela aos vizinhos o que eu mantinha sob resguardo? Ou a outra, que aspira sobrepor-se à tirania das convenções, que rasgar o véu da hiprocrisia, emitir as palavras acomodadas no baú dos enigmas? Será a máscara que alardeia, arrogância, ansiosa por deixar consignada nas paredes do mundo uma única mensagem que justifique sua existência?Olho-me ao espelho.Estarei usando máscara mesmo quando estou sozinha?Acaso já não vivo sem ela, só respiro por meio de seus artifícios?È ela que me deixa ser alada e terrestre, me permite voar e contornar seres e objetos de cristal? É a máscara que pousa desajeitada no meu próprio rosto, onde há de ficar para sempre, até derreter um dia como se fora feita de cera?

Fonte:O Estado de São Paulo,suplemento feminino/1997

3 comentários:

  1. Eliete gostei muito desse artigo.È a mais pura verdade.Vivemos um grande jogo de máscaras.Às vezes estamos tristes e colocamos a máscara da alegria,às vezes estamos cansados e colocamos a máscara de fortes. Valeu! Lucas

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  2. Amei !!!!!!! Pensei em quantas máscaras usamos muitas vezes no mesmo dia !!!

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  3. Belo texto! E verdadeiro... sobretudo quando no dia-a-dia lidamos com muitas e diferentes pessoas, em diversas situações, praticamente nos obrigamos a usar a máscara mais adequada, inclusive pra nos abrigar!... Bjs
    Dri

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"A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu. (...) Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas... Mas não posso explicar a mim mesma." (Lewis Carroll)

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