segunda-feira, 21 de maio de 2012

Circundando a lagoa arredondando a vida
Affonso Romano de Sant'Anna

Então, o que estou lhe dizendo é que neste último domingo a Lagoa Rodrigo de Freitas esteve mais do que nunca linda. Diria, iridescente. Até um chofer de táxi comentou: “Nunca vi essa Lagoa tão cheia de gente tão bonita”.

Vou andando na direção da antiga favela da Catacumba. Que nome mais avesso do que estou vendo agora. A alma hoje está ao sol, livre das catacumbas do noticiário.
Cães. Lindos cães peludos ou não com seus peludos donos e donas bem-tratadas, todos se confraternizando, se cheirando, estudando achegos sob as árvores. Pedalinhos contra o azul, cisnes kitsches, bicicletas ziguezagueantes, carrocinhas, milho verde, água-de-coco. Os quiosques. Almas e corpos ao Sol.
Que pena dos paulistas no Ibirapuera.
Que pena dos argentinos no Parque do Retiro.
Que pena dos americanos no Central Park.
Então, considero esta Lagoa no domingo.
Ninguém veio aqui hoje conclamado para fazer uma demonstração política neste domingo. Ninguém foi chamado para mais um abraço à Lagoa. Ninguém porta faixa de protestos. E, no entanto, o que estou vendo é um imenso manifesto reafirmando a vida.
O nada também é notícia.
Porque as notícias violentas, os conflitos, as explosões, tudo isso, são apenas erupções na superfície.
O nada é que é tudo.
Na verdade, aspiramos ao nada.
Há que estar maduro para o nada. O nada é a coisa mais funda. Os distúrbios, sob forma de acontecimentos, são exercícios de sofrimento, rugas na manhã.
Como se nesse momento todas as tragédias tivessem sido suspensas, as pessoas confluíram para essas margens. Alguém está sendo assassinado, mas não é aqui. Alguém está sendo violentada, mas não é aqui.
É como aquela estorinha que o professor no ginásio contou e que, tantos anos depois, reponta nesta manhã: naquela guerra de 1914-1918, durante o Natal, os chefes das tropas francesas e alemãs decidiram fazer um cessar-fogo para que os soldados celebrassem fraternalmente a data. Os beligerantes chegaram a sair de suas trincheiras e, segundo o professor, alemães e franceses se deram as mãos, cantaram e dançaram.
Confraternizaram por alguns minutos e daí a pouco pularam prá dentro das trincheiras e começaram, de novo, a se matar.
Sempre achei essa estória inacreditável.
Desde sempre acho que este domingo não deveria terminar jamais.
Vou caminhando e pensando na crônica que escreverei para esta quarta-feira. Na cabeça, vários temas, enquanto passam titubeantes bicicletas, cães se enroscam e corpos olímpicos e atléticos desfilam com igual desinibição.
Idéias não faltam para crônica. Nunca tive a síndrome da falta de assunto, senão de excesso. Assunto não falta, sobretudo os ruins. Todos ligados aos problemas do cotidiano, coisas da vaidade política e da perversa economia. Notícias sugerem desdobramentos, há casos por contar, lembranças de viagem, mas hoje não poderia haver notícia mais tocante que a tranqüila felicidade das pessoas em torno desta Lagoa.
Coincidentemente, nesses dias, descobri na Internet um jornal só de boas notícias. Dá prá crer? Só traz informação prá cima. Não é nenhum jornal de Poliana, mas é que a alma da gente quer mesmo descansar, pelo menos no sétimo dia da semana, como fez o Criador.
Uma vez editei, lá em Minas, um “segundo caderno”, e no dia dos mentirosos , no 1º de abril, ousadamente publicamos só notícias que gostaríamos de ter dado e a realidade não deixou. Você sabem, a realidade, às vezes, atrapalha a gente passear na Lagoa. E aquelas boas notícias que inventávamos iam desde a cura do câncer até imaginar que o Brasil estava emprestando dinheiro aos Estados Unidos ou que um time de futebol de várzea havia ganho o campeonato mundial de clubes.
Lá vou contornando a Curva do Calombo. E agora que muitas árvores cresceram, numa versão tropical de “Grande-Jatte”, de Monet, agora que o manguezal deu um acabamento à borda e melhorou a vida dos peixes, agora que as pistas de corrida estão asfaltadas, agora, por favor, salvem as demais lagoas da cidade. Não posso pensar que outras lagoas são estupradas, assassinadas e seqüestradas alhures.
Seu Conde, alcaide-mor desta comarca, não permita que transformem aquilo ali perto do Piraquê em mais um aterro. Está lá o sinal de alarme: já diversas bandeirinhas sinalizam que barcos não devem passar por ali, porque o espelho d’água está rasíssimo. O mato se alastra sobre a terra acumulada. Mais um pouco e algum esperto se apropria de mais uns 300 metros de extensão da Lagoa. Seu Conde, seu Conde, manda logo dragar essa parte, urgentemente, antes que nos seqüestrem mais um pedaço de azul.
E mande também dragar aquela terra que se ajuntou em volta da estátua do indiozinho pescador, feita pelo Pedro Correio de Araújo, hoje exilado em Ouro Preto. Do jeito que está, aquele indiozinho está dando flechada não na água e nos peixes, mas na esperança da gente.
Circundar a Lagoa.
Circundar a vida.
Arredondar a manhã.
Passam corpos falantes:
— Não sei o que ele viu nela.
Passa outro:
— Nunca mais terei outro amante com o mesmo nome do meu marido.
E passa outro:
— Isto tudo depende de como você faz o download.
Há um fascínio no corpo humano. Fico a olhá-lo de soslaio. O das adolescentes com a barriguinha e bundinha no lugar, sob o short leve ou a malha colada à perna. Há os já ajuntando gordurinhas na cintura. Há os sarados e há os desdobrando barrocas volutas.
Ah, se plantassem cerejeiras sob as quais me pus sonhando nesses dias, aquelas que estão florindo roseamente lá nas montanhas enxameadas de vorazes beija-flores, que também só querem o mel das notícias. Ah, se os jardineiros desta cidade gostassem mais de flores que de folhas.
E circundando a Lagoa, circundando a vida, arredondando a crônica e a manhã, dentro de mim ressoa aquela canção na qual a Elizeth – a Divina – ia dizendo: “Luminosa manhã, prá quê tanto azul? Luminosa manhã, tanto azul é demais pro meu coração”.
livro:Tempo de delicadeza



quinta-feira, 17 de maio de 2012


  imagem da internet

Nas tardes de chuva fina e persistente, se o amado estiver longe e o peso invisível de sua ausência for insuportável, colha de sua horta 28 folhas novas de melissa e leve-as ao fogo num litro de água , para um chá. Quando a água ferver deixe o vapor molhar a polpa de seus dedos e mexa três vezes com uma colher de pau. Tire do fogo e deixe descansar por dois minutos. Não ponha açúcar, beba gole a gole de costas para a tarde, numa xícara branca.Se depois de meio litro você não notar certo alívio atrás do esterno, requente o chá e acrescente duas colheres de raspas de rapadura.Se no fim da tarde a agonia persistir, pode ter certeza de que ele não vai voltar. Ou vai voltar outra tarde, e já muito mudado.


Livro de receitas para mulheres tristes de Héctor Abad

segunda-feira, 14 de maio de 2012


Tudo aquilo que não queremos ver, tudo aquilo de que fugimos, tudo que negamos, denegrimos ou desprezamos serve para nos derrotar no final. O que parece desagradável, doloroso, mau pode tornar-se uma fonte de beleza, alegria e força , se confrontado com uma mente aberta.Cada momento é um momento de ouro para quem tem a capacidade de reconhê-lo como tal.
Henry Miller

quinta-feira, 10 de maio de 2012


Crônica de Martha Medeiros




"Dentro de mim não é um lugar para se viver"


A Maria Rezende é uma poeta carioca que recentemente lançou um livro encantador chamado "Bendita palavra", onde, entre tantos versos, fui surpreendida por este: "Dentro de mim não é mais um bom lugar para se viver".
Este verso reflete uma necessidade de se exorcizar, um pânico de não detectar dentro de si um abrigo, uma quentura, um espaço aprazível
onde caibam todos os nossos fantasmas. A voz que fala através da poeta tem vontade de expulsar-se de si própria, já não reconhece um sol interno - isso sou eu que estou interpretando, Maria fala mais bonito: "Teve um tempo em que esse dentro parecia com o fora/era um ótimo lugar pra uma moça como eu era".
Aí a personagem do poema virou uma moça diferente, hospedou em si uma criatura arrebentada, ferida, nauseabunda, e danou-se, agora ela não é mais um bom lugar para se viver.
Explica tanta coisa, esse sentimento.
Explica a gente não conseguir se relacionar bem com os outros, explica autoflagelo, explica engordar ou emagrecer além do razoável, explica suicídio, explica nosso estrangeirismo mesmo quando sozinhos - ou principalmente na solidão. Como lidar
com esse despatriamento, para onde levar nossa mochila, nossa bagagem, nosso eu mesmo pra se instalar em outro corpo? Nascer de novo não dá.
Ou até dá. Até dá.
D
e vez em quando é necessário a gente se perguntar se dentro de nós é um bom lugar para se viver. Depois de ler Maria Rezende eu tenho me perguntado isso. E a resposta sem nenhum charme intelectual, sem nenhuma espécie de autoaversão, sem nenhuma inclinação underground, ou seja, da forma mais simplória, é que sim, eu sou um bom lugar para se viver.

Dentro de mim há pensamentos demais, o que torna tudo meio apertado, mas tenho tentado dar uma arrumada nessas idéias para que cada uma fique na sua gaveta. Há também sentimentos demais, mas de forma alguma vou expulsá-los, deixo que circulem à vontade pelo meu corpo. Dentro de mim as estações são bem definidas: verão é verão, inverno é inverno. Toca música aqui dentro quase o tempo todo, e há uma satisfação secreta que precisa se manter secreta para não passar por boba. Há crianças e adultos dentro de mim, todos da mesma idade. Aqui dentro existe uma praia e uma montanha coladas uma na outra, parece até Rio de Janeiro, só que os tiroteios são raros. O último bangue-bangue emocional que metralhou minha alma faz quase um ano. Dentro de mim estão muitas lágrimas que não foram choradas pra fora e muitos sorrisos que, de tão íntimos, também guardei. Dentro de mim, às vezes, são produzidas algumas cenas sofisticadas e roteiros de filme B. Como não gostar de viver aqui dentro?


E você, tem sido um bom hospedeiro de si mesmo?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

























 

























terça-feira, 8 de maio de 2012


O poeta grego Konstantinos Kavafis ( 1863-1933 ) tem um intrigante poema chamado "À espera dos bárbaros", em que narra que uma cidade vivia em função da chegada desses estranhos. Tudo estava ligado a isso. Ninguém modificava mais nada, porque os bárbaros vinham aí. Senadores não legislavam mais, para quê? apenas esperavam; cônsules punham suas togas bordadas, aguardando; o povo reunia-se na praça principal especulando, e até o rei postou-se na porta da cidade para saudar os invasores.
Sucedeu, no entanto, que notícias vindas das fronteiras, espantosamente, afirmavam que não havia mais bárbaros. E o poema termina dizendo:

"Sem bárbaros o que será de nós.

Ah! Eles eram uma solução."

O que espera a pessoa que espera?

Qual a função da espera?

O que o esperar pode ocultar?

A psicanálise fala da "espera angustiante", que provoca pesadelos, alucinações e incômodos de toda ordem.

Não parece ser esta exatamente a situação descrita nesse poema. Ao contrário, as pessoas estão bem dentro dessa espera. Alojaram-se nela confortavelmente. A espera as faz adiar projetos, obrigações, enfim, a vida.

No caso brasileiro, um povo que há quinhentos anos espera ser "o país do futuro", há uma outra frase que também explica nossa vocação para a espera: "Calma que o Brasil é nosso".
Claro que, nesse caso, reconheçamos, o que era uma espera calma está se tornando uma espera angustiante.
Em O deserto dos tártaros, Dino Buzzatti descreve uma fortaleza na borda do deserto, esperando um ataque inimigo, que nunca ocorre. As sentinelas ficam ali aguardando-aguardando e nesse aguardar passam a vida.
Em O castelo, Kafka narra a situação do personagem que passou toda a vida inutilmente esperando que a porta do castelo se abrisse para ele, sem se dar conta que ela, na verdade, já estava aberta.
Em Esperando Godot, Beckett coloca dois personagens esperando um misterioso personagem, que está para chegar, o qual não sabem quem é nem quando virá, mas essa espera vazia preenche suas vidas.
Eis aí exemplos da espera como uma forma concreta e imaginária de preencher o vazio.
Tanto quanto na ficção, na realidade muitas vezes espera-se que a solução venha de fora. Ainda que através de um choque, revolução ou catátrofe. Neuróticos podem esticar sua neurose ao extremo para ver se alguém os socorre, como quem procura o lugar mais fundo da piscina para que outros, alarmados, o salvem.
Algumas religiões estipulam o juízo final como uma espécie de catástrofe redentora que, paradoxalmente, possibilitaria a redenção.
É também a salvação de fora para dentro.
Da mesma maneira outros concebem a danação vinda também de fora para dentro, como forma culposa de redenção.
É estranho, mas, às vezes, o oponente, o mal, o invasor, o bárbaro terminam por conferir sentido às pessoas e comunidades.
O desnorteante é descobrir que o mal às vezes é imaginário, o oponente está dentro de nós e os bárbaros não virão.

Crônica extraída do livro "Tempo de Delicadeza"
de Affonso Romano de Sant'Anna





sexta-feira, 4 de maio de 2012

"Quando um cavalo vai beber de uma poça d'água, bate com o casco na água.Sabem por quê    Porque ele vê seu reflexo na poça e imagina que há outro cavalo querendo beber a água. Ele bate com a pata para tentar assustar o 'outro' cavalo e expulsá-lo.Cada um de nós, como esse cavalo, vive assustado com seu próprio reflexo e nos recusamos a perceber que tudo é reflexo do Criador. Quanto mais batemos nosso casco, mais forte o outro parece ficar.
Às vezes, deixamos até de beber água pelo temor desse outro."
Nilton Bonder/Fronteiras da inteligência

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Todos os dias a Avó regava a casa como se faz a uma planta. Tudo requer ser aguado, dizia ela. A casa, a estrada, a àrvore.E até o rio deve ser regado.


Mia Couto/Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

sábado, 28 de abril de 2012


CARTA DE ABRAHAN LINCOLN AO PROFESSOR DO SEU FILHO




"Caro professor, ele terá de aprender que nem todos os homens são justos, nem todos são verdadeiros, mas por favor diga-lhe que, para cada vilão há um herói, que para cada egoísta, há também um líder dedicado, ensine-lhe por favor que para cada inimigo haverá também um amigo, ensine-lhe que mais vale uma moeda ganha que uma moeda encontrada, ensine-o a perder, mas também a saber gozar da vitória, afaste-o da inveja e dê-lhe a conhecer a alegria profunda do sorriso silencioso, faça-o maravilhar-se com os livros, mas deixe-o também perder-se com os pássaros no céu, as flores no campo, os montes e os vales.

Nas brincadeiras com os amigos, explique-lhe que a derrota honrosa vale mais que a vitória vergonhosa, ensine-o a acreditar em si, mesmo se sozinho contra todos.

Ensine-o a ser gentil com os gentis e duro com os duros, ensine-o a nunca entrar no comboio simplesmente porque os outros também entraram.

Ensine-o a ouvir todos, mas, na hora da verdade, a decidir sozinho, ensine-o a rir quando estiver triste e explique-lhe que por vezes os homens também choram.

Ensine-o a ignorar as multidões que reclamam sangue e a lutar só contra todos, se ele achar que tem razão.

Trate-o bem, mas não o mime, pois só o teste do fogo faz o verdadeiro aço, deixe-o ter a coragem de ser impaciente e a paciência de ser corajoso.

Transmita-lhe uma fé sublime no Criador e fé também em si, pois só assim poderá ter fé nos homens.

Eu sei que estou pedindo muito, mas veja o que pode fazer, caro professor."

Abraham Lincoln, 1830








terça-feira, 24 de abril de 2012

Quando a terra,
se converte num altar,
a vida se transforma numa reza.
Padre Nunes

  
A mãe é eterna,
o pai é imortal.
Dizer de luar- do- Chão


     Fotos: Eliete

domingo, 22 de abril de 2012

Maria Rezende uma grande poeta.

 

"O risco não é só um traço
é a distância entre um prédio e outro
a diferença entre o pulo e o salto
O risco é riqueza e asfalto a percorrer
pode ser a pé, pode ser voar
o risco é o bambo da corda solta no ar
Dentro dele cabe cálculo cabe medo e incerteza
cabe impulso, instinto, plano
O risco é a pergunta te atacando ao meio-dia
é o preço do sonho pra virar realidade
é a voz das outras gentes
testando a tua vontade
Aceita-lo é saber que não existe estrada certa
linha reta, vida fácil pela frente
Mas que
asa
asa
asa só ganha quem planta no escuro do braço essa semente de poder voar."

Maria Rezende Blog

sexta-feira, 20 de abril de 2012

O segredo da vida de um casal

Contardo Calligaris

Receita do amor que dura: amar o outro não apesar de sua diferença, mas por ele ser diferente.

Em geral , na literatura, no cinema e nas nossa fantasias, as histórias de amor acabam quando os amantes se juntam (é o modelo Cinderela) ou, então, quando a união esbarra num obstáculo intransponível (é o modelo Romeu e Julieta). No modelo Cinderela, o narrador nos deixa sonhando com um “viveram felizes para sempre”, que seria a “óbvia” conseqüência da paixão.

No modelo Romeu e Julieta, a felicidade que os amantes teriam conhecido, se tivessem podido se juntar, é uma hipótese indiscutível. O destino adverso que separou os amantes (ou os juntou na morte) perderia seu valor trágico se perguntássemos: será que Romeu e Julieta continuariam se amando com afinco se, um dia, conseguissem deitar-se juntos sem que Romeu tivesse que escalar a casa de Julieta até o famoso balcão? Ou se, em vez de enfrentar a oposição letal de suas ascendências, eles passassem os domingos em espantosos churrascos de família?
Talvez as histórias de amor que acabam mal nos fascinem porque, nelas, a dificuldade do amor se apresenta disfarçada. A luta trágica contra o mundo que se opõe à felicidade dos amantes pode ser uma metáfora gloriosa da dificuldade, tragicômica e inglória, da vida conjugal. O casal que dura no tempo, em regra, não é tema para uma história de amor, mas para farsa ou vaudeville -às vezes, para conto de terror, à la “Dormindo com o Inimigo”.

Durante décadas, Calvin Trillin escreveu uma narrativa de sua vida de casal, na revista “New Yorker” e em alguns livros (por exemplo, “Travels with Alice”, viajando com Alice, de 1989, e “Alice, Let’s Eat”, Alice, vamos para a mesa, de 1978). Nesses escritos, que são só uma parte de sua produção, Trillin compunha com sua mulher, Alice, uma dobradinha humorística, em que Calvin era o avoado, o feio e o desajeitado, e Alice encarnava, ao mesmo tempo, a beleza, a graça e a sabedoria concreta de vida.

À primeira vista, isso confirma a regra: a vida de casal é um tema cômico. Mas as crônicas de Trillin eram delicadas e tocantes: engraçadas, mas nunca grotescas. Trillin não zombava da dificuldade da vida de casal: ele nos divertia celebrando a alegria do casamento. Qual era seu segredo? Pois bem, Alice, com quem Trillin se casou em 1965, morreu em 2001.

Trillin escreveu “Sobre Alice”, que acaba de ser publicado pela Globo. Esse pequeno e tocante texto de despedida desvenda o segredo de um amor e de uma convivência felizes, que duraram 35 anos. O segredo é o seguinte: Calvin e Alice, as personagens das crônicas, não eram artifícios literários, eram os próprios. A oposição entre os dois foi, efetivamente, o jeito especial que eles inventaram para conviver e prolongar o amor na convivência.

Considere esta citação de um texto anterior, que aparece no começo de “Sobre Alice”: “Minha mulher, Alice, tem a estranha propensão de limitar nossa família a três refeições por dia”. A graça está no fato de que a “propensão” de Alice não é extravagante, mas é contemplada por Calvin como se fosse um hábito exótico.

Alice é situada e mantida numa alteridade rigorosa, em que é impossível distinguir qualidades e defeitos: Calvin a ama e admira como a gente contempla, fascinado, uma espécie desconhecida num documentário do Discovery Channel. Se amo e admiro o outro por ele ser diferente de mim (e não apesar de ele ser diferente de mim), não posso considerar que minha maneira de ser seja a única certa. Se Calvin acha extraordinário que Alice acredite na virtude de três refeições diárias, ele pode continuar petiscando o dia todo, mas seu hábito lhe parecerá, no fundo, tão estranho quanto o de Alice.

Com isso, Calvin e Alice transformaram sua vida de casal numa aventura fascinante: a aventura de sempre descobrir o outro, cuja diferença inesperada nos dá, de brinde, a certeza de que nossa obstinada maneira de ser, nossos jeitos e nossa neurose não precisam ser uma norma universal, nem mesmo a norma do casal. Há quem diga que o parceiro ideal é aquele que nos faz rir.

 Trillin completou a fórmula: Alice era quem conseguia fazê-lo rir dele mesmo. Com isso, ele descobriu a receita do amor que dura.

terça-feira, 17 de abril de 2012


Ao amanhecer , todas as confusões de ontem, são coisas do passado.
Hoje inicia-se um novo dia, um dia que jamais existiu.
Autor desconhecido

quarta-feira, 11 de abril de 2012


“Ás vezes é preciso dormir, dormir muito. Não pra
fugir, mas pra descansar a alma dos sentimentos. Quem nasceu com a
sensibilidade exacerbada sabe quão difícil é engolir a vida. Porque tudo,
absolutamente tudo devora a gente. Inteira.”
Marla de Queiroz

segunda-feira, 2 de abril de 2012


Abrimos um álbum e mostramos aos amigos as fotos da viagem. Paisagens. Aqui um lago. Ali um pôr-do-sol. A foto é a mesma. Mas quem garante que as paisagens das almas sejam as mesmas?
Aquilo que sinto, vendo o lago e o pôr-do-sol, não é a mesma coisa que você sente, vendo o mesmo lago e o mesmo por-do-sol. “O que sinto, a verdadeira substância com que o sinto, é absolutamente incomunicável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais incomunicável é”, diz Bernardo Soares.
As paisagens da alma não podem ser comunicadas. A alma é um segredo que não pode ser dito. Por isso, quanto mais fundo entramos nas paisagens da alma mais silenciosos ficamos. A alma é o lugar onde os sentimentos são profundos demais para palavras. “Calamos”, diz Sor Juana, “não porque não tenhamos o que dizer, mas porque não sabemos como dizer tudo aquilo que gostaríamos de dizer”.
(Rubem Alves. In: As cores do crepúsculo: a estética do envelhecer. Campinas [SP]: Papirus Editora, 2001, p. 153.

quinta-feira, 29 de março de 2012


Todo momento é importante.Todo encontro é surpresa.Todo rosto é revelação.
Essa atitude devolve a importância a cada instante, traz novidade ao dia, refresca a vida.
Carlos G. Vallés
Elogio da vida cotidiana

segunda-feira, 26 de março de 2012


“É necessário se espantar, se indignar e se contagiar, só assim é possível mudar a realidade.”
Nise da Silveira

terça-feira, 20 de março de 2012



“Árvore (…) é uma pessoa que não fala; que vive sempre de pé no
mesmo ponto; que em vez de braços, tem galhos; que em vez de unhas, tem folhas;
que, em vez de andar falando da vida alheia e se implicando com a gente (como
os tais astrônomos), dão flores e frutas. Umas dão pitangas vermelhas; outras
dão laranjas doces ou azêdas – e é destas que tia Nastácia faz doces; outras,
como aquela enorme ali (as lições eram sempre no pomar) dão bolinhas pretas
chamadas jaboticabas (…) [as árvores não saem do mesmo lugar] Porque têm raízes
(…) Raiz é o nome das pernas tortas que elas enfiam pela terra adentro. Bem
querem andar, as pobres árvores, mas não conseguem. Só saem do lugarzinho em
que nascem quando surge o machado. (…) Machado é o mudador das árvores – muda a
forma delas, fazendo que o tronco e os galhos fiquem curtinhos. Muda-lhes até o
nome. Árvore machadada deixa de ser árvore. Passa a ser lenha. (…).
(Monteiro
Lobato, Memórias da Emília, São Paulo: Brasiliense, 1973, p. 92-93)

sábado, 17 de março de 2012


O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta que o rio faz por trás de sua casa se chama enseada.Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.
Manoel de Barros

Apontadora de Idéias

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São Paulo, Brazil
"A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu. (...) Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas... Mas não posso explicar a mim mesma." (Lewis Carroll)

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