terça-feira, 14 de junho de 2011

foto: Eliete Cascaldi

Simplesmente

Vista de perto, toda a gente é monotonamente diversa.

Fernando Pessoa

A sala está em penumbra, e a cortina branca de seda balança suavemente.A brisa e o barulho da rua penetram timidamente pela janela.O dia esteve quente, e o trânsito, como sempre, infernal, fazendo com que ela demorasse a chegar a sua casa.Logo na entrada, lê a placa que comprou numa feirinha: ”Aqui tem gente feliz”.

Joga a chave do carro, a bolsa e finalmente seu corpo no sofá, respirando profundamente.Fecha os olhos, e com as mãos abraça seu corpo, desejando encontrar-se, ou melhor, procurando juntar seus pedaços e sentir que está viva.

Imóvel, dança no compasso de seu coração, cantarolando mentalmente: “Meu coração não sei por que, bate feliz quando te vê”...

O velho carrilhão, amigo fiel da família, parece querer dar-lhe as boas vindas, pois começa a tocar.Agora, relaxada, é capaz de sentir o cheirinho do jasmim que enfeita a sacada de sua casa.

Sabe que está vivendo um verdadeiro estado de graça e, consciente deste presente, procura retê-lo, assim como fez quando fixou fortemente em sua memória os olhos azuis de sua avó, minutos antes de ela falecer.

Sabe que a felicidade consiste nisso: na capacidade de absorver avidamente as pequenas coisas.

Esse momento é único; é o mar abrindo-lhe para que ela faça sua travessia a terra prometida, tal como Moisés.

Um barulho de chaves na porta ao lado e eis que o mar se fecha, e ela retorna ao mundo de todos. O vizinho chegando, indica-lhe que é hora de esquentar o jantar; logo as crianças entrarão em algazarra.

Ela daria tudo para poder prolongar esse momento de encontro profundo consigo mesma, de paz e solitude.

Mas é hora de “tratar da vida”...

Eliete Cascaldi Sobreiro

sábado, 11 de junho de 2011

foto: Eliete Cascaldi Sobreiro

“Há, dentro de cada um de nós, um “jardim secreto”, fechado, que precisa ser aberto. O terapeuta, serviçal, é o jardineiro. Tem a obrigação de cuidar do jardim. Arrancar os matos e pragas, por causa das flores.

Terapia é isso: visitar o jardim secreto, até que se encontre a chave perdida.”
Rubem Alves.

sexta-feira, 10 de junho de 2011


UBUNTU

A jornalista e filósofa Lia Diskin, no Festival Mundial da Paz, em Floripa (2006), nos presenteou com um caso de uma tribo na África chamada Ubuntu.

Ela contou que um antropólogo estava estudando os usos e costumes da tribo e, quando terminou seu trabalho, teve que esperar pelo transporte que o levaria até o aeroporto de volta pra casa. Sobrava muito tempo, mas ele não queria catequizaros membros da tribo; então, propôs uma brincadeira pras crianças, que achou ser inofensiva.Comprou uma porção de doces e guloseimas na cidade, botou tudo num cesto bem bonito com laço de fita e tudo e colocou debaixo de uma árvore.

Aí ele chamou as crianças e combinou que quando ele dissesse "já!", elas deveriam sair correndoaté o cesto, e a que chegasse primeiro ganharia todos os doces que estavam lá dentro.As crianças se posicionaram na linha demarcatória que ele desenhou no chão e esperaram pelo sinal combinado. Quando ele disse "Já!", instantaneamente todas as crianças se deram as mãos e saíram correndo em direção à árvore com o cesto.

Chegando lá, começaram a distribuir os doces entre si e a comerem felizes.O antropólogo foi ao encontro delas e perguntou porque elas tinham ido todas juntas se uma só poderia ficar com tudo que havia no cesto e, assim, ganhar muito mais doces.Elas simplesmente responderam: "Ubuntu, tio. Como uma de nós poderia ficar feliz se todas as outras estivessem tristes?"Ele ficou desconcertado! Meses e meses trabalhando nisso, estudando a tribo, e ainda não havia compreendido, de verdade,essência daquele povo.

Ou jamais teria proposto uma competição, certo?

Ubuntu significa: "Sou quem sou, porque somos todos nós!"Atente para o detalhe: porque SOMOS, não pelo que temos...

UBUNTU P'RA VOCÊ!

terça-feira, 7 de junho de 2011

foto: Eliete Cascaldi

MEU PRIMEIRO AMOR

As coisas pedem pouso quando amam.

Carlos Nejar

Era um domingo de verão e o sol dava sinais de que estava chegando para valer. Os cachorros já se colocavam a postos, cuidando para que ninguém se aproximasse da casa de seus donos, e os passarinhos voavam e cantavam, saudando o alvorecer.Eu estava pronta para a caminhada diária, pensava fazer o mesmo percurso de sempre.Mas, por alguma razão não consciente, fui tomando o caminho do centro da cidade. Após alguns minutos, encontrava-me perto do jardim da Catedral.Os passos ficaram mais lentos e, interiormente, fiz marcha a ré.Meus olhos observavam cada detalhe daquela paisagem; as pedras, as árvores e os bancos que ali permaneciam fiéis às suas histórias.Decepcionada, percebo habitantes novos, as pombas que parecem ter feito daquele lugar seu habitat.Sinto muita tristeza e uma grande culpa por ter- me afastado por tanto tempo daquele lugar mágico.Lágrimas brotaram instantaneamente de meus olhos. Era só saudade.

saudade, palavra triste quando se perde um grande amor”

O jardim da Catedral foi o meu primeiro amor, e esse reencontro com minha história causou-me uma profusão de sentimentos.

“igual uma borboleta vagando triste por sobre uma flor”

Como a força de um ímã, aquele chão de pedras atraiu vários fragmentos de memória, que foram ligando um fato ao outro, um sentimento com outro.Aos domingos, meu irmão e eu íamos à missa das nove horas, e caso nos comportássemos bem, poderíamos brincar no coreto do jardim e correr por suas calçadas.Naquele jardim, aprendi a andar de tico-tico, passeava com o carrinho vermelho de bolinhas brancas, levando minha boneca preferida, e foi naquele jardim que fiquei maravilhada com as unhas postiças feitas com flores amarelas que nasciam nos canteiros que rodeavam o jardim.Dou-me conta de que todas essas lembranças estão vivas e fazem vibrar todo o meu corpo.

Hoje consigo perceber que o jardim, com suas duas partes, a superior, que parecia uma extensão da Catedral, guarda todas as vivências da criança que fui, e a parte debaixo do jardim contém recordações da adolescência. Muitas vezes íamos à tarde, depois das aulas, para namorar.Quantas lembranças naqueles bancos ali espalhados, e que estavam sempre ocupados por namorados ou grupos de jovens a conversar.

Esse jardim ainda continuou a fazer parte de minha vida por muito tempo. Quando casada ,muitas vezes levei minha filha para ver a fonte luminosa, comer pipoca e ouvir a banda tocar no coreto.Tenho certeza de que esse jardim não foi só meu, que foi o primeiro amor de muitas pessoas que aqui nasceram e cresceram.O sino da Catedral tocou, e o silêncio, povoado de ressonâncias do vivido intensamente, esvaiu-se , e minha atenção dirigiu-se para o momento presente, lembrando-me de que tinha um longo caminho de volta para casa.

Hoje quero conhecer lugares novos que irão proporcionar-me experiências maravilhosas, de que mais tarde recordarei com saudades, mas também sei que o primeiro amor o tempo não leva. É muito bom quando os lugares mágicos ficam preservados para confirmar nossas lembranças, o que infelizmente nem sempre acontece.

Inspiração: Meu primeiro amor

Composição: Hermínio Gimenez, José Fortuna e Pinheirinho Jr.

domingo, 5 de junho de 2011

Dewing_Thomas_Summe

A infinita fiadeira


(A aranha ateia
diz ao aranho na teia:
o nosso amor
está por um fio!)

A aranha, aquela aranha, era tão única: não parava de fazer teias! Fazia-as de todos os tamanhos e formas. Havia, contudo, um senão: ela fazia-as, mas não lhes dava utilidade. O bicho repaginava o mundo. Contudo, sempre inacabava as suas obras. Ao fio e ao cabo, ela já amealhava uma porção de teias que só ganhavam senso no rebrilho das manhãs.
E dia e noite: dos seus palpos primavam obras, com belezas de cacimbo gotejando, rendas e rendilhados. Tudo sem fim nem finalidade. Todo o bom aracnídeo sabe que a teia cumpre as fatais funções: lençol de núpcias, armadilha de caçador. Todos sabem, menos a nossa aranhinha, em suas distraiçoeiras funções.

Para a mãe-aranha aquilo não passava de mau senso. Para quê tanto labor se depois não se dava a indevida aplicação? Mas a jovem aranhiça não fazia ouvidos. E alfaiatava, alfinetava, cegava os nós. Tecia e retecia o fio, entrelaçava e reentrelaçava mais e mais teia. Sem nunca fazer morada em nenhuma. Recusava a utilitária vocação da sua espécie.
- Não faço teias por instinto.

- Então, faz porquê?
- Faço por arte.

Benzia-se a mãe, rezava o pai. Mas nem com preces. A filha saiu pelo mundo em ofício de infinita teceloa. E em cantos e recantos deixava a sua marca, o engenho da sua seda. Os pais, após concertação, a mandaram chamar. A mãe:
- Minha filha, quando é que assentas as patas na parede?
E o pai:
- Já eu me vejo em palpos de mim...

Em choro múltiplo, a mãe limpou as lágrimas dos muitos olhos enquanto disse:
- Estamos recebendo queixas do aranhal.
- O que é que dizem, mãe?
- Dizem que isso só pode ser doença apanhada de outras criaturas.

Até que se decidiram: a jovem aranha tinha que ser reconduzida aos seus mandos genéticos. Aquele devaneio seria causado por falta de namorado. A moça seria até virgem, não tendo nunca digerido um machito. E organizaram um amoroso encontro.
- Vai ver que custa menos que engolir mosca - disse a mãe.
E aconteceu. Contudo, ao invés de devorar o singelo namorador, a aranha namorou e ficou enamorada. Os dois deram-se os apêndices e dançaram ao som de uma brisa que fazia vibrar a teia. Ou seria a teia que fabricava a brisa?
A aranhiça levou o namorado a visitar a sua colecção de teias, ele que escolhesse uma, ficaria prova de seu amor.
A família desiludida consultou o Deus dos bichos, para reclamar da fabricação daquele espécime.

Uma aranha assim, com mania de gente? Na sua alta teia, o Deus dos bichos quis saber o que poderia fazer. Pediram que ela transitasse para humana. E assim sucedeu: num golpe divino, a aranha foi convertida em pessoa. Quando ela, já transfigurada, se apresentou no mundo dos humanos logo lhe exigiram a imediata identificação. Quem era, o que fazia?

- Faço arte.
- Arte?

E os humanos se entreolharam, intrigados. Desconheciam o que fosse arte. Em que consistia? Até que um, mais-velho, se lembrou. Que houvera um tempo, em tempos de que já se perdera memória, em que alguns se ocupavam de tais improdutivos afazeres. Felizmente, isso tinha acabado, e os poucos que teimavam em criar esses pouco rentáveis produtos - chamados de obras de arte - tinham sido geneticamente transmutados em bichos. Não se lembrava bem em que bichos. Aranhas, ao que parece.

Mia Couto, In O Fio das Missangas

sexta-feira, 3 de junho de 2011

imagem recebida por e-mail, portanto, não sei o autor

Saudade é um buraco dolorido na alma. A presença de uma ausência. A gente sabe que alguma coisa está faltando. Um pedaço nos foi arrancado. Tudo fica ruim. A saudade fica uma aura que nos rodeia. Por onde quer que a gente vá, ela vai também. Tudo nos faz lembrar a pessoa querida. Tudo que é bonito fica triste, pois o bonito sem a pessoa amada é sempre triste. Aí, então, a gente aprende o que significa amar: esse desejo pelo reencontro que trará a alegria de volta.

A saudade se parece muito com a fome. A fome também é um vazio. O corpo sabe que alguma coisa está faltando. A fome é a saudade do corpo. A saudade é a fome da alma.

(Rubem Alves)

segunda-feira, 30 de maio de 2011


Um amigo Leve

Não espere considerações sobre a complexidade dos sentimentos, mas ninguém será melhor companhia


É sempre assim : com tanto para fazer e sem tempo para nada, a gente acaba negligenciando um monte de coisas, entre elas nossos afetos.
E como os sentimentos não sobrevivem sem uma certa atenção, um dia se começa a achar que o coração não consegue -e nunca mais vai conseguir- gostar, ou ao menos sofrer por alguém.
Mas o tempo passa, aquele amigo que a gente via o tempo todo viaja e um belo dia você sente saudades dele. Preste atenção: esse fato é mais merecedor de uma comemoração do que qualquer data querida. Ter saudades de um amigo, há quanto tempo isso não acontecia? Ah, que coisa boa.
Uma simples saudade faz com que você se sinta viva, mesmo que sejam saudades apenas de um amigo -como se um amigo pudesse ser chamado de "apenas". Mas tantas vezes você amou apaixonadamente, e quando ele fez uma viagem sentiu um alívio, até para descansar de tanta paixão e poder se encher de cremes, sem ele por perto para reclamar? E tem melhor do que de vez em quando ter aquela cama enorme só para você, e até dormir com a televisão ligada?
Ter um amigo é coisa muito boa, e sendo um que não te patrulha, não te inveja, não te analisa nem discute a relação, é bom demais -e raro. Um amigo tão bom que te aceita do jeito que você é, que não faz perguntas indiscretas, que te entende e está por ali sem ser, jamais, invasivo. Você sabe de certas particularidades dele, ele das suas, mas delas não falam, só quando é necessário. E com pouca intimidade.
O excesso de intimidade pode ser fatal, mesmo entre mãe e filho, marido e mulher. A intimidade física não é nada, perto da dos pensamentos e sentimentos. Pode ser pior do que ouvir a pergunta "em que você está pensando?". Pode sim: é quando alguém tenta analisar a razão pela qual você disse ou fez determinada coisa num determinado dia, pretendendo, assim, conhecer você melhor do que você mesma se conhece.
Um distanciamento saudável é indispensável às boas relações humanas.
Qual a primeira qualidade que deve ter um amigo? Bem, além das clássicas, como lealdade, fidelidade, discrição sobre as intimidades que ouviu nas horas do aperto, disponibilidade para escutar as histórias, bom humor, e mais o quê? Leveza. Ter um amigo leve é uma benção dos céus.
Não espere dele considerações sobre a vida e a complexidade dos sentimentos humanos, mas ninguém será melhor companhia para jantar, viajar, conviver, do que um amigo leve. Já pensou, passar três dias seguidos com um amigo profundo? Se estiverem tomando banho de mar, ele pode se lembrar do tempo em que era criança, falar da relação que tinha com a mãe e o pai, e daí para cair no divã é um pulo; eles gostam de falar como são tolos os banqueiros e políticos, que só pensam em dinheiro e poder e não compreendem que a vida real etc. etc., quanta profundidade.
Com essa mania, quando estão numa rede em frente à praia, comendo um camarãozinho frito e tomando uma cerveja estupidamente gelada, se esquecem de que nessa hora o bom é não pensar em nada.
É isso que faz um amigo leve; ele não diz nada, apenas usufrui a vida, e quem tiver a sorte de estar perto dele vai ter momentos de grande felicidade - ou pelo menos quase isso.
Com um amigo assim, até a vida fica mais leve.

Folha de São Paulo 29/05/2011


domingo, 29 de maio de 2011

foto:Eliete Cascaldi
Sempre, e sempre de um modo diferente, a ponte acompanha os caminhos morosos ou apressados dos homens para lá e para cá, de modo que eles possam alcançar outras margens...
A ponte reúne enquanto passagem que atravessa.
Martin Heidegger(2002)

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Um amor mais do que lindo...

Um casamento muito feliz...

Uma noite encantada




terça-feira, 24 de maio de 2011

Anita Malfati




Nós todos adotamos ou inventamos um estilo singular para a história de nossa vida .

Você se lembra daqueles personagens de quadrinhos que são impiedosamente seguidos por uma nuvem preta, que é uma espécie de guarda-chuva ao contrário?



Eles não têm para onde fugir: deslocam-se, mas a chuva os persegue, mesmo debaixo do teto de sua casa.

Claro, no outro extremo do leque há pessoas que são seguidas por um sol esplendoroso, mesmo quando estão no escuro ou no meio de um desastre que deveria empalidecer a luz do dia (se ela tivesse vergonha na cara).



Em suma, cada um de nós parece estar sempre numa condição meteorológica que lhe é própria e não depende nem da estação nem dos acontecimentos do momento.



Esse clima privado, como um pano de fundo que nos seria imposto, é uma consequência quase inevitável dos primórdios de nossa vida e das bênçãos ou maldições murmuradas ao redor de nosso berço.



Talvez sejamos um pouco mais livres para escolher o estilo da vida que levaremos, seja qual for nosso pano de fundo.Geralmente, por estilo DE vida, entende-se um modelo que a gente imita para construir uma identidade e propô-las aos olhos dos outros.


Mas o estilo DA vida, que é o que me interessa hoje, é outra coisa: é a forma literária na qual cada um narra sua própria vida, para si mesmo e para os outros.

Um exemplo. Acabo de ler (e continuarei relendo por um bom tempo) "The Book of Dreams" (o livro dos sonhos), de Federico Fellini (ed. Rizzoli). São mais de 400 páginas, em grande formato, que reproduzem fotograficamente os cadernos nos quais o diretor italiano registrou seus sonhos, em palavras e desenhos, de 1960 a 1968 e de 1973 a 1990 (ele morreu em 1993).Tullio Kezich, que assina a introdução, conta que, em 1952, no seu primeiríssimo encontro com Fellini, o diretor lhe perguntou o que ele tinha sonhado no dia anterior. Tullio não sabia e ganhou uma filípica de Fellini sobre a importância de não perder o "trabalho noturno", que seria no mínimo tão significativo quanto o que pensamos e fazemos quando estamos acordados.


Fellini amava dormir e sonhar; ele vivia com um caderno ao lado da cama, onde registrava texto e visões imediatamente, ao despertar. E note-se que seu interesse pelos sonhos era anterior a seu primeiro contato com a psicanálise (que foi desastrado, com um freudiano, em 1954, e bem-sucedido com um junguiano, Ernst Bernhard, de 1960 a 1965, quando Bernhard morreu).Vários amigos que me viram ler o livro me perguntaram se, então, os sonhos de Fellini serviam de material para seus filmes. A questão não cabe.



O que o livro revela é que, para Fellini, o sonho era, por assim dizer, o gênero literário no qual ele vivia (e portanto contava) sua vida- nos cadernos da mesa de cabeceira, nos filmes e no dia a dia.Cuidado. Fellini não especulava nem um pouco sobre, sei lá, a "precariedade" de nossa percepção, que pode confundir sonho com realidade. Ele nunca se perguntava se o que estava vivendo era sonho ou realidade, porque, para ele, o sonho era, propriamente, o estilo da realidade.Esse estilo era o que fazia com que seu olhar estivesse constantemente maravilhado ou atônito: graças a esse estilo, ele atravessava (e contava) a vida como "um mistério entre mistérios" (palavras dele).




Pois bem, nós todos adotamos ou inventamos um estilo singular para a história de nossa vida -é o estilo graças ao qual nossa vida se transforma numa história.Cada um escolhe, provavelmente, o estilo narrativo que torna sua vida mais digna de ser vivida (e contada). Há estilos meditativos, investigativos, introspectivos, paranoicos ou, como no caso de Fellini, oníricos e mágicos.



Quanto a mim, o estilo narrativo da minha vida é, sem dúvida, a aventura. Não só pelos livros que me seduziram na infância ("Coração das Trevas", de Conrad, seria o primeiro da lista). Mas porque a narrativa aventurosa sempre foi o que fez que minha vida valesse a pena, ou seja, não fosse chata, mesmo quando tinha toda razão para ser.Quando meu filho, aos quatro ou cinco anos, parecia se entediar, eu sempre recorria a um truque, que ele reconhecia como truque, mas que funcionava. Eu me calava e me imobilizava de repente, como se estivesse ouvindo um barulho suspeito e inquietante; logo eu sussurrava: "Atenção! Os piratas!".Nem ele nem eu acreditávamos na chegada dos piratas, mas ambos achávamos que a vida merecia um pouco de suspense.

Folha de São Paulo/Equilíbrio: 21/4/2011


O meu estilo de vida é romântico e o seu?

Um dia daqueles...

Tudo lindo, todos felizes...


Só temos que agradecer a Deus por todas as graças recebidas.









terça-feira, 17 de maio de 2011

segunda-feira, 9 de maio de 2011

foto:Kemal_Kamil




UM DESSES MOMENTOS
Estou em um desses momentos em que o desassossego não me deixa dormir nem acordar; nem ir nem ficar.
É só confusão e atordoamento.
O coração gagueja, titubeia com tantas emoções endoidecidas.
As batidas descompassadas pedem explicação e eu não sei nada de mim. Não sei o que acontece nos subterrâneos do meu ser. Se eu fosse este coração sairia em disparada e deixar-me-ia com minha confusão. No entanto , ele é amor e não abandona o capitão. Fica batendo pesado, apertado e envergonhado, por mostrar-se desgovernado e incapaz de dar conta de tal confusão.
Acalme coração valente, logo voltarei a ser feliz. Quem sabe foi só um alarme falso, uma mentira sentida ou uma verdade abortada que despontou neste horizonte íntimo?
Pobre coração! Não pode sequer descansar, parar um pouco para distrair ou relaxar! Sua vida é a vida de seu hospedeiro; para isto que ele vive. Dedicação total ao outro. Quando pressente “perigo à vista”, põe-se de prontidão e faz ressoar todo o batalhão, com a firme intenção de colocar medo no inimigo e fazê-lo bater em retirada.
Caríssimo coração, procure dormir. Não dê importância a este desassossego, você bem sabe, que ninguém sabe o que quer, e que ansiar e temer é ofício de todos nós .
Peça aos olhos para fecharem as cortinas, os ouvidos para cerrarem as portas; assim no escurinho você se acalmará.
Procurarei um berço, um colo, um ombro, um toque, um beijo. Vou procurar um amor para namorar!
Estou em um desses momentos em que o desassossego não me deixa dormir nem acordar, nem ir nem ficar.
É hora de calar, parar e pensar e fazer-me na bagunça do desfaço.



Eliete Cascaldi Sobreiro






Queridos amigos, agora vou fazer uma pausa nas visitas aos blogs amigos e nas postagens do meu blog para viver um momento muito especial: o casamento da minha filha.

Esta crônica foi escrita em 2010,não tem nada a ver com o casamento, embora posso confessar que a ansiedade é grande e o desassossego existe,mas a razão é felicidade.bjs

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Paul Cezanne



A desventura pode até ser terrível, mas console-se: se você for vítima ou culpado, você vai aparecer na foto.
Vários leitores pediram que eu insistisse no mesmo tema da semana passada: por que a culpa é um de nossos jeitos preferidos para dar sentido ao mundo?



Como é possível que, diante de uma desgraça, o fato de sentirmo-nos culpados constitua, para nós, uma espécie de conforto?


Todos conhecemos as expressões usuais pelas quais, por exemplo, Fulano ou Fulana podem eles mesmos admitir que "fizeram um câncer" -e não foi porque fumaram dois maços de cigarros por dia durante a vida inteira, nem porque, verão após verão, deitaram no sol para bronzear a pele, sem protetor algum.



Nada disso: a expressão "fazer uma doença", em geral, indica outro tipo de responsabilidade. Mas vamos devagar.Não é raro que a primeira reação de quem recebe um diagnóstico maligno consista em procurar uma intenção escusa da qual ele poderia ser a vítima. Envenenaram a água da cidade; o ar é repleto de resíduos daquela fábrica cuja chaminé solta fumaça a cada noite; há um dentista que tem consultório acima do meu, ninguém sabe quantos raios-x ele faz por dia, será que ele isolou sua sala do jeito certo ou será que a radiação chega até aqui?



Na mesma linha, Deus ou o diabo podem ser os mandantes de minha desgraça. Deus, porque ele quer colocar à prova minha fé, como ele já fez com Jó. O diabo, porque ele é príncipe aqui na terra e todo o mal vem dele.



Essas reações parecem ter o mesmo propósito dos delírios paranoicos: elas acusam um agente externo (Deus, o diabo ou os vizinhos) para que o mundo ganhe sentido, ou seja, no caso, para que o mal que se abate sobre a gente tenha uma explicação. "Adoeci porque alguém me quis mal": graças a essa crença, não sofro por acidente nem por acaso, mas sou vítima de uma vontade que me castiga ou me testa. O que se ganha com isso? Antes de responder, mais uma observação.



Em geral, quando temos intenções que preferimos esconder de nós mesmos, uma boa solução é atribui-las a outros. Portanto, não seria de todo estranho que a gente acusasse Deus e todo mundo por males que nós mesmos causamos.Desse ponto de vista, reconhecer que nós somos os primeiros culpados de nossa desventura seria um progresso. Algo assim: até que, enfim, o cara se tocou, não foi Deus, não foi o demônio, nem a usina química no morro atrás da casa, foi ele mesmo que "fabricou" sua doença.


Geralmente, a explicação deste "fabricar sua doença" passa quer seja por uma poética do estouro (emoções contidas e silenciadas tiveram que se expressar e explodiram numa neoplasia), quer seja por uma poética da erosão (as mesmas emoções reprimidas foram atacando o corpo como a famosa gota que cava a pedra, não pela força, mas caindo repetidamente).



Tanto faz: o que me importa dizer é que entre acusar a Deus e todo mundo e acusar a nós mesmos não há progresso algum.A posição de vítima (Deus, o diabo e os vizinhos me querem mal) e a posição de culpado (eu fabriquei minha doença porque meu inconsciente é meu verdadeiro inimigo), ambas são chamadas a "explicar" o mal que nos assola, porque, aparentemente, preferimos sofrer de um mal explicado a sofrer de um mal aleatório. Por que isso?



Simples: tanto se eu for a vítima escolhida por Deus e pelo mundo quanto se eu for a vítima de mim mesmo, apesar de doente, eu me manterei nas luzes da ribalta.



Em suma, agimos e pensamos como se nosso sofrimento pudesse ser aliviado por uma compensação narcisista: a desventura é terrível, mas, ao menos, como vítima ou como culpado, sairei na foto. Não é uma consolação?Talvez. Mas é uma consolação custosa, porque, nessa foto em que sou vítima ou culpado, a desventura é o que me define, o que me resume.



De fato, qualquer sofrimento seria um fardo mais leve se ele pudesse aparecer como quase sempre é: um mal sem sentido, que não faz parte de nenhum plano e não é fruto de nenhuma vontade escusa, nem da nossa.



Teste de boa saúde: estamos bem quando podemos ser atropelados sem ter que considerar que alguém tentou nos matar ou que nós mesmos nos jogamos nas rodas do caminhão, empurrados por impulsos inconfessáveis.Um amigo querido morreu de um câncer que ele não fabricou e que não lhe foi imposto nem por Deus nem pelo diabo nem pelos vizinhos. Ele dizia: os males reais são suficientemente graves para que a gente não se esforce para lhes acrescentar mil sentidos imaginários.

quarta-feira, 4 de maio de 2011







No tempo que passei pegando caronas nos EUA, aprendi que a segurança só vem se abrimos mão dela .
Alguns consideram minha mudança para cá, uma viagem sem volta para um país que nunca havia visitado, um ato de coragem, um pulo gigante. Não foi. Foi um passo gradativo, uma extensão de uma década errante.Entre meus 20 e 30 anos, passei muito tempo pegando caronas pelos EUA com a placa: "Qualquer lugar menos este". Vir para cá foi uma separação de um lugar onde nunca me senti em casa.Meus dias na estrada me fizeram sentir seguro sobre como viver no presente. Ao me colocar em uma situação aparentemente insegura por um tempo indefinido e aceitando suas consequências, aprendi a desenvolver uma segurança interior.




O filosofo inglês Allan Watts disse: "O desejo de segurança é uma dor e uma contradição e, quanto mais nós o perseguimos, mais doloroso fica".




Quer dizer, renunciar à compulsão por se sentir seguro torna você mais seguro.Na época das caronas, eu vivia de bicos construindo casas, colhendo maçãs, trabalhando como barman e garçom e lia Watts. Essa jornada incluiu pausas maiores em cinco cidades americanas e europeias antes de chegar ao Rio, o refúgio ideal.O jeito descontraído dos cariocas ajudou a me recuperar de uma cultura mais estressante e competitiva. E, quando vi que podia sobreviver como jornalista freelancer, a pausa virou permanência. Eu tinha 33 anos. Agora, 28 anos depois, ainda sou freelancer.




E viver à margem de uma profissão, como viajar à beira de uma estrada, ensina que a segurança vem de ter fé em si mesmo.



Os jovens de hoje não são aventureiros como no início dos anos 70.Era uma época em que os jovens faziam viagens sem destino, fossem psicodélicas ou quilométricas, para abrir as portas da percepção e da autodescoberta.Hoje, poucos jovens fazem essas odisseias. Uma economia global instável e mais competitiva acelerou as tentativas de entrar no mercado de trabalho.



Muitos conhecem o terno e a gravata antes de conhecerem a si mesmos.



Para alguns, esse processo é um constante e imprevisível ato de autorreinvenção. Eu estudei zoologia e cinema, virei jornalista e depois cronista.



E descobri que você encontra segurança não quando a procura, mas quando aceita os mistérios e as incertezas da vida. Não é uma busca externa, mas uma entrega interna. É a diferença entre passar pela vida e deixar a vida passar por você.

MICHAEL KEPP, jornalista norte-americano radicado há 28 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)
Folha equilíbrio/Folha de São Paulo/03/05/2011

domingo, 1 de maio de 2011




"A psicanálise acarretou, como bem disse o próprio Freud, a terceira e talvez mais grave ferida ao narcisismo humano. A primeira foi quando a ciência mostrou que nosso planeta, longe de ser o centro do universo, não constituia senão uma parte insignificante e perdida dentro do sistema cósmico.



A segunda mortificação sobreveio quando a investigação biológica reduziu cruelmente sua pretensão de ser algo especial e único na ordem dos seres vivos: Darwin nos vinculou como um elo a mais na cadeia de evolução da matéria.



...a psicanálise ocasionou aquela que viria a ser talvez a mais profunda de todas as feridas, ao revelar que não somos nem mesmo senhores em nossa própria casa: o inconsciente, como ordem exluída de nosso conhecimento, vontade e controle, nos habita e nos determina, sem que possamos chegar a conhecer , em suas justas dimensões, nem seu quando nem seu de que modo".

Carlos Domínguez Morano- Crer depois de Freud

sexta-feira, 29 de abril de 2011


"No mundo psíquico interior, o cotidiano do afeto ocupa algumas vezes o lugar da Atlântida".

Joyce Mc Dougall


Anne-Marie Zilberman


"A aflição que não encontra saída através das lágrimas faz com que outros órgãos chorem".

Henry Maudsley (psiquiatra inglês).











quinta-feira, 28 de abril de 2011

quarta-feira, 27 de abril de 2011




Duas ou três coisas que eu sei da vida

Posso até te aconselhar

Antes de mais nada esqueça os conselhos

E deixa o coração mandar .



Duas ou três coisas que eu sei da estrada

Posso até te sugerir

Não vai pela sombra não,deixa o dia

Deixa a luz te colorir


Duas ou três coisas que eu sei do mundo

Eu podia te ensinar

Mas cada mergulho é um

Vá bem fundo e aprenda logo a nadar.


Duas ou três coisas guardo comigo

Que eu podia te contar

Mas quem tá com Deus não corre perigo

Vá onde o vento te levar.



Affonso Romano de Sant’Anna? (não tenho certeza da autoria desses versos,é uma música cantada por Joyce).

segunda-feira, 25 de abril de 2011



O VÔO DA ÁGUIA


Já que estamos nesse clima de recomeçar, com a alma limpa para novas coisas, vou iniciar transcrevendo algo que recebi. Havia pensado em outra crónica, coisa tipo "propostas para um novo milénio", como o fez Ítalo Calvino. Mas às vezes um texto parabólico, elíptico, pode nos dizer mais que outros pretensamente objetivos.


Ei-lo:"A águia é a única ave que chega a viver 70 anos. Mas para isso acontecer, por volta dos 40, ela precisa tomar uma séria e difícil decisão.Nessa idade, suas unhas estão compridas e flexíveis. Não conseguem mais agarrar as presas das quais se alimenta. Seu bico, alongado e pontiagudo, curva-se. As asas, envelhecidas e pesadas em função da espessura das penas, apontam contra o peito. Voar já é difícil.Nesse momento crucial de sua vida a águia tem duas alternativas: não fazer nada e morrer, ou enfrentar um dolorido processo de renovação que se estenderá por 150 dias.


A nossa águia decidiu enfrentar o desafio. Ela voa para o alto de uma montanha e recolhe-se em um ninho próximo a um paredão, onde não precisará voar. Aí, ela começa a bater com o bico na rocha até conseguir arrancá-lo. Depois, a águia espera nascer um novo bico, com o qual vai arrancar as velhas unhas. Quando as novas unhas começarem a nascer, ela passa a arrancar as velhas penas. Só após cinco meses ela pode sair para o voo de renovação e viver mais 30 anos.


"Esse texto foi mandado como um cartão de fim de ano pela Rose Saldiva, da Saldiva Propaganda. Tem mais um parágrafo explicitando, comentando essa parábola e o titulo geral é "Renovação".Achei que você ia gostar de tomar conhecimento disto, sobretudo quando Janeiro nos inunda com sua luz.Este texto vale mais que mil ilustrações.Sei como é difícil uma nova ou surpreendente ideia para cartão de fim de ano. Mas esse, além de bater fortemente em nosso imaginário, dispara em nós uma série de correlações e desdobramentos.


A: abertura é seca e forte. Não há uma palavra sobrando. Parece as batidas do destino na Quinta Sinfonia de Beethoven. Releiam. "A águia é a única ave que chega a viver 70 anos. Mas para isso acontecer, por volta dos 40, ela precisa tomar uma séria e difícil decisão.” ·Já li em algum lugar que Jung dizia que, em torno dos 40, alguma coisa subterrânea começa a ocorrer com a gente e os seres humanos sentem que estão no auge de sua força criativa. É quando podem (ou não) entrar em contacto com forças profundas de sua personalidade.Já ouvi de especialistas em administração de empresas que tem uma hora em que elas começam a crescer e seus dirigentes têm que tomar uma decisão — ou fazem com que cresçam de vez assumindo mais pesados desafios ou, então, fecham, porque ficar estagnado é apenas adiar a morte.Já mencionei em outras crónicas o personagem Jean Barois (de Roger Martin du Gard) que fez um testamento aos 40 anos, quando achava que estava no auge de sua potência intelectual, temendo que na velhice, carcomido e alquebrado, fizesse outro testamento que negasse tudo aquilo em que acreditava quando jovem. Com efeito, envelhecendo, fez realmente outro testamento que desautorizava e desmentia o anterior. É que sua perspectiva na trajectória da vida mudara, como muda a de um viajante ou a do observador de um fenómeno.O ano está começando.Mais grave ainda: um século está se iniciando.Gravíssimo: mais que um ano, mais que um século, um novo milénio está se inaugurando.Três vezes Sísifo: o ano, o século, o milénio.


Sísifo — aquele que foi condenado a rolar uma pedra montanha acima, sabendo que quando estivesse quase chegando no topo — cataprum!... a pedra despencaria e ele teria que empurrá-la, de novo, lá para o alto.Pois bem: "A águia é a única ave que chega a viver 70 anos. Mas para isso acontecer, por volta dos 40 anos, ela precisa tomar uma séria e difícil decisão. Nesta idade suas unhas estão compridas. Não conseguem mais agarrar as presas das quais alimenta. Seu bico, alongado e pontiagudo, curva-se. As asas, envelhecidas e pesadas em função da espessura das penas, apontam contra o peito. Voar já é difícil.” ·Nossa sociedade pensou ter inventado uma maneira de resolver, nos seres humanos, o drama da águia: a cirurgia plástica. Silicone aqui e acolá, repuxar a pele acolá e aqui, pintar e implantar cabelos. Isto feito, a águia sai flanando pelos salões, praias, telas, ruas, escritórios e passarelas.


Mas aquela outra águia prefere uma solução que veio de dentro. Talvez mais dolorosa. Recolher-se a um paredão, destruir o velho e inútil bico, esperar que outro surja e com ele arrancar as penas, num rito de reiniciação de 150 dias.Então a águia, digamos, acabou de descasar.(Tem que redimensionar seu corpo e seus desejos, desmontar casa e sentimentos, realocar objectos e sensações, reassumir filhos.)Então a águia, digamos, acabou de perder o emprego.(Tem que descobrir outro trajecto diário, outras aptidões, enfrentar a humilhação.)Então, a águia,digamos, acabou de mudar de país.(A crise ou o amor levou-a a outras paragens, tem que reaprender a linguagem de tudo e reinventar sua imagem em outro espelho.)Então, a águia, digamos, acabou de perder alguém querido.(É como se uma parte do corpo lhe tivessem sido arrancada, sente que não poderá mais voar como antes, que o azul lhe é inútil.)Então, a águia, digamos, está numa nova situação em que está sendo desafiada a mostrar sua competência.(Tem medo do fracasso, acha que não terá garras nem asas para voar mais alto.)Então, a águia, digamos, andou olhando sua pele, sua resistência física, certos achaques de velhice.Pois bem. Há que jogar fora o bico velho, arrancar as velhas penas, e recomeçar.


Época de metamorfose.Os estudiosos da metamorfose dizem que não apenas larvas se transformam em borboletas. Para nosso espanto as próprias pedras passam também por silenciosas metamorfoses.Enfim, parece que estamos condenados à metamorfose. Morrer várias vezes e várias vezes renascer. Até que, enfim, cheguemos à metamorfose final, onde o que era sonho e carne se converte em pó.Mas que fique sempre no azul o imponderável voo da águia.
Affonso Romano de Sant'Anna

domingo, 24 de abril de 2011



...Hoje, domingo de Páscoa, é uma boa ocasião para perguntar: Você já fez sua páscoa? Você está verdadeiramente disposto a fazer a sua páscoa?


Páscoa significa passagem. Você só faz a passagem de uma situação de pecado para a vida de santidade quando se convence de que, vivendo no pecado, você só encontrará a morte, nunca a vida. Todos querem passar da morte para a vida, mas nem todos estão dispostos a entrar pela porta estreita que conduz à verdadeira vida (cf. Mt 7,13-14).


A primeira carta de João diz: “Nós sabemos que passamos da morte para a vida porque amamos os irmãos. Quem não ama permanece na morte” (1Jo 3,14). A maneira como você trata as pessoas que estão mais próximas de você revela se você já ressuscitou ou se ainda permanece na morte.
Neste dia da Ressurreição de Jesus, São Paulo nos convida a viver como ressuscitados. Viver como ressuscitado significa procurar “as coisas do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus” (Cl 3,1). Na prática, isso significa que, diante de cada escolha, de cada decisão, eu devo me perguntar: a minha escolha, a minha decisão, vai me levar para o alto, para Deus, ou para baixo, me enterrando na morte?


Viver como ressuscitado significa aceitar o fato de que nossa verdadeira vida “está escondida com Cristo em Deus” (Cl 3,3). Nós ainda não nos vemos plenamente ressuscitados, porque diariamente temos que fazer a nossa páscoa, a nossa passagem das trevas para a luz, da mentira para a verdade, e nem sempre estamos dispostos fazer essa passagem.


Isso significa que a Páscoa não é somente um dom do Pai para nós, mas também uma tarefa que temos que realizar todos os dias, até que Cristo, nossa vida, se manifeste e revele plenamente a glória da sua Ressurreição em cada um de nós (cf. Cl 3,4).
Tenha uma feliz Páscoa e um abençoado tempo pascal!
Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 22 de abril de 2011



No Evangelho segundo são Mateus, o Reino dos Céus também é descrito como fermento:'O Reino dos Céus é como o fermento que uma mulher misturou com três medidas de farinha até que tudo ficou levedado'.


Um pouco de fermento tem o poder de levedar uma grande quantidade de farinha. A farinha é nossa consciência. Ela contém sementes negativas: sementes de medo, ódio e confusão. Mas, se tivermos dentro de nós a semente do Reino de Deus e soubermos como tocá-la, ela terá o poder de levedar, de transformar tudo".

Thich Nhat Hanh: Vivendo Buda,Vivendo Cristo

quarta-feira, 20 de abril de 2011



Existem momentos em nossa vida em que parecemos “estar num beco sem saída”, como nos diz o ditado popular, no qual tudo aquilo pelo qual lutamos, trabalhamos e vivemos se encerra ali, sem ao menos restar uma fagulha de esperança na qual deter nosso coração inquieto a procurar um novo sentido para continuar a viver. Parece que não há para onde fugir. Diante de tal acontecimento cabe apenas perguntar-nos: E agora?
O poeta mineiro, Carlos Drummond de Andrade, traduziu em palavras muito bem colocadas (não sendo a intenção dele) o sentimento que passava pelo coração dos discípulos, quando aparentemente uma cruz aquietou a voz do mestre, quando um túmulo lhes pareceu sepultar suas próprias vidas, quando uma pedra não apenas sepultou Jesus, mas sepultou de cada qual a melhor parte da vida que tinham, afinal de contas Jesus conseguiu transformar de maneira profunda a vida de cada pessoa que com Ele se encontrava.
Drummond escreveu um de seus mais belos poemas em torno de várias perguntas endereçadas a José, que, sendo um nome bastante corriqueiro, parece questionar também a nossa condição humana; parece falar claramente às nossas crises existenciais. Ele diz: “E agora, José? A festa acabou, a luz se apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? E agora você?” Ao colocar a dureza da vida diante de José ( podemos nos colocar no lugar José!), o que o autor pretende não é fomentar em nossos corações o desânimo ou a tristeza que possa parecer conter nossos questionamentos; na verdade, o autor pretende nos mover para uma reação. Já que não há onde se esconder precisamos ter a coragem de não deixar morrer tudo aquilo que experimentamos de nobre e belo em nossa vida.
No coração dos discípulos, diante do sepulcro, parece apenas restar a dupla saudade: primeiro, saudade daquele que se foi, Jesus; e a segunda, saudade de suas antigas vidas de pescadores. Mas, mesmo que sentissem saudades, já não podiam ser iguais ao que eram antes, pois o encontro profundo que tiveram com Cristo tinham lhes mudado o coração de tal forma que já não cabia em suas novas vidas os velhos homens.
Mas, eis que ao terceiro dia, para a surpresa e espanto de seus corações tristes e desconfiados, “o túmulo está vazio”! Novamente enchem os seus e os nossos corações de esperança, sabor e vida. O amor falou mais alto do que o silêncio do sepulcro, a vida brotou na dureza do tumulo do coração humano, a presença do Cristo novamente pode ser sentida. A alegria da ressurreição anima, alegra e faz o sol nascer em cada coração frio, escuro, pois se tirarmos o amor do mundo resta só o sepulcro frio e sem vida. Tirem de mim Jesus Cristo e não me sobra mais nada, pois Cristo é tudo em mim e eu não sei viver a minha vida se não tiver a presença amorosa e norteadora do amor feito gente.
Para encerrar lembro um trecho das catequeses de Jerusalém que está na liturgia das horas, da quinta-feira na oitava da páscoa: “ó maravilha de amor pelos homens! Em seus pés e mãos inocentes, Cristo recebeu os cravos e suportou na dor; e eu sem dor nem esforço, mas apenas pela comunhão em suas dores, recebo gratuitamente a salvação”.
Por fim, poderíamos perguntar: E agora, Jesus? O que sou sem tua presença a me iluminar? O que sou sem teu amor a me humanizar? Sem ti, nada sou; contigo sou mais livre, vivo e feliz!
Bruno Luiz Ferreira da Silva – seminarista do 1ºAno de TEOLOGIA

terça-feira, 19 de abril de 2011

imagem da internet



"Uma existência ressentida, a do homem do ressentimento, é aquela que não promove a vida, que se apega a uma hierarquia restrita de valores que lhe dá garantias e alguma satisfação".



...o homem do ressentimento não pode abrir mão de seu apego a essa escala valorativa, pois é ela que lhe garante um lugar imaginário de superioridade".



Winnicott e seus interlocutores/ organizadores Benilton bezerra Jr., Francisco Ortega

segunda-feira, 18 de abril de 2011

foto:Eliete Cascaldi
"Vosso mau amor de vós mesmos vos faz do isolamento um cativeiro".

Nietzche


domingo, 17 de abril de 2011

foto: Eliete Cascaldi
Cavalgando outro dia por um caminho

pensativo a pensar em má jornada

deparei-me com Amor em meio à estrada.

Dante Alighieri (1265-1321)

sábado, 16 de abril de 2011

fotografia: Geraldo Cascaldi
..."a cultura faz tanta pressão para nos dobrar desde pequeninos (que é quando se torce o pepino) que a questão do alívio se torna prioritária em nossas vidas. Passamos a vida esperando a hora da chateação passar. Desde a hora de chegar o peito, continuando na hora de acordar e ser castigado porque fez xixi na cama, passando pela hora de tocar o sino porque a aula acabou, a hora de terminar os deveres de casa, a hora de terminar o expediente, de tirar os sapatos apertados e folgar os dedinhos, de tirar a gravata, de arranjar um marido para não ficar solteirona, de casar porque todos os amigos já casaram e tem-se que virar homem sério, de tomar um drinque que ninguém é de ferro, de chegar o fim de semana e esquecer esta loucura, de sair de férias porque eu já não aguento mais, de ganhar na loteria e ser feliz, de se aposentar daquela chateação, de ter um pretexto para sair de casa e não morrer de tédio, de chegar a hora da novela para viver a vida dos outros porque a da gente, ah, a da gente é isso aí.


Onde um projeto de vida?

Onde o tempo para se planejar alguma coisa?

Aonde foram as metas da juventude?

Crescer na nossa cultura acaba se tornando sinônimo de sobreviver.

Fonte: A criação segundo Freud: O que queremos para nossos filhos?

Francisco Daudt da Veiga

Apontadora de Idéias

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"A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu. (...) Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas... Mas não posso explicar a mim mesma." (Lewis Carroll)

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