sábado, 27 de fevereiro de 2010

Stephen Kanitz é administrador por Harvard (www.kanitz.com.br)
Ponto de vista. VEJA, Rio de Janeiro, 29 de setembro 2004
Na semana passada comemorei trinta anos de casamento. Recebemos dezenas de congratulações de nossos amigos, alguns com o seguinte adendo assustador: "Coisa rara hoje em dia". De fato, 40% de meus amigos de infância já se separaram, e o filme ainda nem terminou. Pelo jeito, estamos nos esquecendo da essência do contrato de casamento, que é a promessa de amar o outro para sempre. Muitos casais no altar acreditam que estão prometendo amar um ao outro enquanto o casamento durar. Mas isso não é um contrato.

Recentemente, vi um filme em que o mocinho terminava o namoro dizendo "vou sempre amar você", como se fosse um prêmio de consolação. Banalizamos a frase mais importante do casamento. Hoje, promete-se amar o cônjuge até o dia em que alguém mais interessante apareça. "Eu amarei você para sempre" deixou de ser uma promessa social e passou a ser simplesmente uma frase dita para enganar o outro.
Contratos, inclusive os de casamento, são realizados justamente porque o futuro é incerto e imprevisível. Antigamente, os casamentos eram feitos aos 20 anos de idade, depois de uns três anos de namoro. A chance de você encontrar sua alma gêmea nesse curto período de pesquisa era de somente 10%, enquanto 90% das mulheres e homens de sua vida você iria conhecer provavelmente já depois de casado. Estatisticamente, o homem ou a mulher "ideal" para você aparecerá somente, de fato, depois do casamento, não antes.

Isso significa que provavelmente seu "verdadeiro amor" estará no grupo que você ainda não conhece, e não no grupinho de cerca de noventa amigos da adolescência, do qual saiu seu par. E aí, o que fazer? Pedir divórcio, separar-se também dos filhos, só porque deu azar? O contrato de casamento foi feito para resolver justamente esse problema. Nunca temos na vida todas as informações necessárias para tomar as decisões corretas.
As promessas e os contratos preenchem essa lacuna, preenchem essa incerteza, sem a qual ficaríamos todos paralisados à espera de mais informação. Quando você promete amar alguém para sempre, está prometendo o seguinte: "Eu sei que nós dois somos jovens e que vamos viver até os 80 anos de idade. Sei que fatalmente encontrarei dezenas de mulheres mais bonitas e mais inteligentes que você ao longo de minha vida e que você encontrará dezenas de homens mais bonitos e mais inteligentes que eu.

É justamente por isso que prometo amar você para sempre e abrir mão desde já dessas dezenas de oportunidades conjugais que surgirão em meu futuro. Não quero ficar morrendo de ciúme cada vez que você conversar com um homem sensual nem ficar preocupado com o futuro de nosso relacionamento. Nem você vai querer ficar preocupada cada vez que eu conversar com uma mulher provocante. Prometo amar você para sempre, para que possamos nos casar e viver em harmonia". Homens e mulheres que conheceram alguém "melhor" e acham agora que cometeram enorme erro quando se casaram com o atual cônjuge esqueceram a premissa básica e o espírito do contrato de casamento.
O objetivo do casamento não é escolher o melhor par possível mundo afora, mas construir o melhor relacionamento possível com quem você prometeu amar para sempre. Um dia vocês terão filhos e ao colocá-los na cama dirão a mesma frase: que irão amá-los para sempre. Não conheço pais que pensam em trocar os filhos pelos filhos mais comportados do vizinho. Não conheço filho que aceite, de início, a separação dos pais e, quando estes se separam, não sonhe com a reconciliação da família. Nem conheço filho que queira trocar os pais por outros "melhores". Eles aprendem a conviver com os pais que têm.
Casamento é o compromisso de aprender a resolver as brigas e as rusgas do dia-a-dia de forma construtiva, o que muitos casais não aprendem, e alguns nem tentam aprender. Obviamente, se sua esposa se transformou numa megera ou seu marido num monstro, ou se fizeram propaganda enganosa, a situação muda, e num próximo artigo falarei sobre esse assunto. Para aqueles que querem ter vantagem em tudo na vida, talvez a saída seja postergar o casamento até os 80 anos. Aí, você terá certeza de tudo.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010



BENDITAS

Benditas coisas que eu não se

Os lugares onde não fui

Os gostos que não provei

Meus verdes ainda não maduros

Os espaços que ainda procuro

Os amores que eu nunca encontrei

Benditas coisas que não sejam benditas

A vida é curta

Mas enquanto dura

Posso durante um minuto ou mais

Te beijar pra sempre

o amor não mente, não mente jamais

E desconhece do relógio o velho futuro

O tempo escorre num piscar de olhos

E dura muito além dos nossos sonhos mais puros

Bom é não saber o quanto a vida dura

Ou se estarei aqui na primavera futura

Posso brincar de eternidade agora

Sem culpa nenhuma

Zèlia Duncan
Adoro esta música, adoro esta letra. Adoro pensar que podemos brincar de eternidade agora, sem culpa nenhuma...

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010


Os pés do silêncio.
Não me lembro mais os protagonistas desta história, nem quem a contou. Data doinício dos anos 60, quando começou o cerco americano a Cuba. Embora de personalidades diferentes, Che Guevara e Fidel Castro reinavam na cena política com grande e igual liderança. À curiosidade de uma professora que fora a Cuba para um congresso sobre como o povo sentia na prática a diferença entre eles, alguém lhe deu esta resposta: "Quando Guevara fala, nós sentamos para escutá-lo,e quando Fidel fala, nos levantamos para fazer o que ele quer".A primeira vez que contei essa história, uma pessoa concluiu: "Sempre achei mesmo que Fidel Castro era melhor". Fidel incitava à ação. Guevara, ao pensar.Esse comentário sempre me remete ao preconceito vigente na cultura ocidental, que opõe o pensar ao agir, e o desqualifica.Temos um fascínio pela atividade e pela atividade que fabrica resultados tangíveis. Por isso valorizamos tanto a ciência, uma modalidade de pensar que produz teorias, conceitos, instrumentos, remédios, aparelhos, coisas... Já a reflexão, por ser uma forma de pensamento que não produz nada palpável e porque sua atividade é invisível, não só é tida como fútil, mas, também, de certa forma se tornou incompreensível para nós.O pensamento da ciência não é invisível, porque consiste da aplicação de métodos objetivos, com regras de procedimentos, fórmulas de aplicação e análise, que devem ser comuns a todo cientista. O pensar científico é um agir. Já a reflexão,além de não gerar produtos tangíveis, não pode se pautar por regras de raciocínio comuns. Assim como Guevara, na história, ela nos faz parar para ouvir. Ela nos faz suspender nossas idéias e raciocínios corriqueiros, nos desprender deles, nos abrir para uma nova revelação.O que estamos aqui chamando de reflexão coincide com o que os orientais conhecem por meditação.Para os filósofos gregos, todo ato de pensar começa com o que chamavam de espanto. Um acontecimento em que nos sentimos surpreendidos pela revelação de algo, de seu ser. Esse espanto é o que na linguagem diária se diz cair a ficha ou ainda insight e intuição. Quando cai a ficha, ficamos emudecidos, paralisado sem nosso agir, mesmo que por frações de segundo. Ficamos desarmados, pois os raciocínios que fazíamos e as verdades anteriores já não servem mais. Ao mesmo tempo, sentimo-nos iluminados e abertos para essa nova compreensão. Não nos parece ter tido participação ativa em tal descoberta, mas atingidos pela forçade uma revelação. A nós, compete simplesmente deixar a coisa ser como ela é. Sem forçá-la a nada: a um princípio, crença, desejo, necessidade...Esse espanto é um lugar de silêncio. Só o silêncio possibilita o desvelamento do que quer se mostrar a nós. O silêncio é uma clareira, uma luz sob a qual pode se refletir aquilo que antes vivia nas trevas. O espanto, o silêncio, a luz se unem para refletir (daí a reflexão) o quê e como as coisas são. Só depois é que sentiremos a necessidade de sair do silêncio. De ir em busca de palavras para exprimir e comunicar nossa descoberta. Palavras que a guardem e a protejam do esquecimento.Como nossa cultura ocidental não valoriza a reflexão, mas a ação, como ela não autentica o recolhimento, mas a atividade produtiva, é sempre muito difícil entender o que é parar de raciocinar para refletir. É difícil tanto entender o que é esse silêncio, quanto silenciar. Não temos, como os orientais, um ritual culturalmente desenvolvido para nos levar ao silêncio, como a meditação. Temos que nadar contra a maré.Mas o primeiro passo pode ser dado. Trata-se de desmistificar a crença de que só o pensamento produtivo vale alguma coisa. Trata-se de acreditar, como Heidegger,que "...os grandes pensamentos sempre chegam com os pés do silêncio".

Dulce Critelli, professora de filosofia da PUC-SP, autora dos livros "Educação eDominação Cultural" e "Analítica do Sentido" e coordenadora do Existentia -Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Um lugar para chamar deMeu”.

É bom viajar, sair de casa e descobrir novos lugares e novas belezas.
Descansar a vida de seu cotidiano; revitalizar o olhar, acalmar a mente e oxigenar a alma.
É muito bom esmiuçar outro pedacinho deste vasto mundo e conhecer o jeito de viver de pessoas diferentes e tão iguais a nós.
É bom desarmar-se frente à imponência das montanhas que se mostram para nós pela primeira vez; ouvir o mar que se esparrama preguiçosamente pela praia, ser instigado por uma ruela que se insinua com suas sombras e luz, e palpitar o coração no centro de uma metrópole.
É muito bom observar pessoas indo e vindo, e imaginar suas histórias de vida, seu cotidiano, suas alegrias e medos.
Como é bom viajar pelas entranhas de nosso País ou de um país estrangeiro e experimentar suas comidas, conhecer a expressão cultural de seu povo, seus costumes, e tentar decifrar seus amores.
Mas nada se compara ao que sinto quando vejo uma igreja.
Não importa se é uma capela ou uma catedral, só sei que suas torres atingem de cheio meu coração .
É uma sensação de aconchego e proteção, pois simboliza a presença viva de Deus em nosso meio. Sei que ali naquela cidade, ou naquele povoado, há pessoas que acreditam e procuram viver a lei do amor.
Quando tenho a oportunidade de entrar nessas igrejas e conhecê--las por dentro, a felicidade é muito grande! Posso assimilar o silêncio pacífico de seu interior, orar, cantar e louvar a Deus com as mesmas músicas, com os mesmos rituais, com tudo aquilo que conheço e sei de cor. Alimento–me do que há de mais sublime, e a sensação de pertencimento e de continuidade produz-me uma grande paz. Sinto-me em casa e experimento o Eterno.
Posteriormente, ao sair para o“lá fora”, o diferente e transitório, vou renovada e apaziguada.
Inoculada pela chama da vida, passo a entender profundamente o escritor alemão Novalis, que assim se interroga: ”Então,a onde vamos? Sempre para casa”.
Texto: Eliete T. Cascaldi Sobreiro
Foto: Igrejas de Jaboticabal (Catedral Nossa Senhora do Carmo e Igreja Nossa Senhora Aparecida)

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010


Pai Nosso

Pai... Mãe de olhos mansos.

Sei que estás invisível em todas as coisas.

Que o teu nome me seja doce, a alegria do meu mundo,

.Traze-nos as coisas boas em que tens prazer:o jardim, as fontes, as crianças, o pão e o vinho,os gestos ternos, as mãos desarmadas, os corpos abraçados..

.Sei que desejas dar-me o meu desejo mais fundo, desejo cujo nome esqueci...Mas tu não esqueces nunca.

Realiza, pois, o teu desejo para que eu possa rir.

Que o teu desejo se realize em nosso mundo,da mesma forma como ele pulsa em ti.

Concede-nos contentamento nas alegrias de hoje,o pão, a água, o sono...

Que sejamos livres da ansiedade.

Que nossos olhos sejam tão mansos para com os outros como os teus o são para conosco .

.Porque se formos ferozes não poderemos acolher a tua bondade.E ajuda-nos para que não sejamos enganados pelos desejos maus.

.E livra-nos daquele que carrega a morte dentro dos próprios olhos.

Amém.
Rubem Alves
pintura: Ronaldo Mendes dos Anjos

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010






"O ambiente é de suma importância, pois funciona como a arena na qual o indivíduo se debate pelo ajustamento.
Mas encarar o ambiente como causa não é correto, nem vantajoso.
O ambiente fornece o tabuleiro de xadrez, e mesmo a maior parte das peças com as quais se joga. Com o tabuleiro e as peças, não se pode, contudo, predizer como a partida será jogada". Rollo May


segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010


Obra: Tarsila do Amaral


Pelo sonho é que vamos
Pelo sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos?
Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.
Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia a dia.
Chegamos?
Não chegamos?
- Partimos.
Vamos.
Somos.
http://www.azeitao.net/Sebastiao/museu.htm
Sebastião Artur Cardoso da Gama (Vila Nogueira de Azeitão, Setúbal, 10 de Abril de 1924 - Lisboa, 7 de Fevereiro de 1952), foi um poeta e professor português, licenciado em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1947. Foi professor em Lisboa, (Escola Veiga Beirão, hoje, Fernão Lopes), Setúbal e Estremoz (Escola Industrial e Comercial).
Dentro de cada um de nós há um outro que não conhecemos. Ele fala conosco por meio dos sonhos."
(Carl Jung)




sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010


APRENDIZES DAS ESTRELAS
O caminho da vida humana geralmente é dividido em fases: infância, adolescência, maturidade e velhice.
Assim compreendido, pode dar-nos a impressão de que a vida consiste numa série de fases, perfeitamente distintas e independentes, que se movem em direção a um final- a morte.
Mas se apurarmos um pouco mais nossa percepção, vemos que cada vida é um deslizar gradual e imperceptível de condição para condição, assim como a transição do dia para a noite.
Mesmo acompanhando minuto por minuto, não somos capazes de determinar a hora exata que o dia termina e a noite começa.
Apesar disso, chega um momento em que está completamente escuro, e então sabemos que é noite, e aí é possível contrastá-la com o dia.
Assim acontece com as pessoas.
Chega um momento em que o indivíduo já adquiriu tantas características da maturidade que a juventude faz parte de suas lembranças;podemos então dizer que essa pessoa atingiu a maturidade.
E como deve ser vivido esse percurso?
Goethe dizia que “ Nós viajamos não apenas para chegar , mas para viver enquanto viajamos”.
Assim deve ser nossa postura diante da vida.
Olhar cada período de nosso viver como tendo seus encantamentos, evitando, assim, cair no senso comum de acreditar que a aurora é mais fértil que o entardecer.
São momentos diferentes, sim, mas cabe a cada um de nós descobrir e aceitar o propósito de cada momento. Entardecer em nossas vidas pode assim ser visto como uma etapa que não prenuncia a escuridão total cheia de medos, mas a beleza das estrelas.
Aprendizes das estrelas traz, metaforicamente, uma visão de como olhar e aprender com a velhice e os idosos: como estrelas que pontuam nossa existência e que , muitas vezes, nem olhamos.
Estrelas que tiveram sempre a função de orientar os seres humanos em suas viagens.
Que tem luz própria, indicando o percurso de uma vida, e que ,ao contemplá-
las , estamos também contemplando seu passado.
Velhos-estrelas: vê-los, ouvi-los, amá-los, deixar-nos envolver pela sua luz, pelo seu passado, pela sua biografia, pelo seu presente, só nos enriquece, pois indica-nos a direção que devemos tomar e... o que não devemos repetir.
Texto publicado no âmbito do desafio Velhice para Fábrica de Letras









terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Contardo Calligaris
Volta com pôr do sol . A viagem seduz os viajantes, mas seu desejo é nostalgia do que eles deixaram atrás .
No sábado passado, no aeroporto de Chicago, esperava o voo que me levaria de volta a São Paulo. Diante de mim, uma longa parede de vidro mostrava, além dos aviões estacionados, um pôr do sol glorioso e dilacerante. Por alguma sabedoria (consciente ou não), meus companheiros de espera estavam quase todos sentados de costas para a janela. Alguns poucos, pela posição de seus assentos, teriam condição de contemplar o pôr do sol, mas não levantavam os olhos de seu notebook.
Oscar Wilde afirmava que o pôr do sol só passou a existir com as pinturas de William Turner, no começo do século 19; era um jeito de dizer que a natureza está lá desde sempre, mas é a arte que nos ensina a enxergá-la. Concordo. E há outras razões pelas quais o pôr do sol é uma experiência especificamente moderna. Nos últimos 300 anos, atribuímos mais importância à existência individual de cada um do que à vida de grupos, tribos e nações, ou seja, salvo momentos vacilantes de fé em ressurreição ou reencarnação, nossa morte nos parece acabar com tudo o que importa.
Somos, portanto, especialmente sensíveis ao fim do dia, cujo espetáculo acarreta consigo a lembrança dolorosa do fim de nossa jornada, que se aproxima. A psicopatologia reconhece, aliás, a existência, em alguns indivíduos, de variações sazonais do humor: depressão no outono e no começo do inverno e, às vezes, exaltação maníaca na primavera. Pode ser que a alternância das estações, sobretudo onde elas são mais marcadas, longe do Equador e dos trópicos, produza mudanças no metabolismo. Mas pode ser, simplesmente, que a alternância das estações lembre o ciclo de nossa vida, e o outono seja o equivalente anual do fim da tarde de cada dia.
No caso do pôr do sol de sábado, em Chicago, visto da sala de espera de um aeroporto, era como se a iminência da viagem tornasse a experiência mais triste. Por quê? Há um quadro de Jean-François Millet, que todo mundo conhece, “O Ângelus“, pintado em 1859.
Nele, um casal de camponeses, no meio da lavoura, ouve os sinos do ângelus vespertino (à distância, vê-se o campanário de uma igreja). Os sinos dizem que é a hora de rezar e que o dia acabou. Deveria emanar do quadro uma sensação intensa de paz: seu ofício cumprido, o casal logo voltará para o calor pobre, mas digno, de seu lar. Mas esse retrato de uma vida simples e reta sempre foi, para mim (e não só para mim), estranhamente aflitivo. Acontece que o ângelus vespertino é um toque de paz só para quem tem uma casa para a qual voltar. Para os outros, é o sinal melancólico de uma perda sem remédio. Tudo bem, viajei muito. Várias vezes, ao longo da vida, mudei de língua e país, mas o que importa aqui não são os acidentes de minha história.
A modernidade se define pela viagem, pela decisão de não aceitar que o lugar onde nascemos seja nosso destino -por exemplo, pela vontade de deixar o campo e ir para a cidade. É assim desde o século 13 ou 14, quando a gente começou mesmo a circular -primeiro pela Europa, depois pelos mares e por terras incógnitas e agora pelos céus e mundo afora. Na “Divina Commedia” (que é uma enciclopédia da modernidade incipiente), Dante descreve assim o fim da tarde (minha tradução em prosa de “Purgatório, 8, 1-6″): “Já era a hora em que o desejo volta aos navegantes, e seu coração é enternecido pela lembrança do dia em que disseram adeus a seus doces amigos; é também a hora que fere de amor o novo viajante, se ele ouve de longe um sino que parece chorar o dia que está morrendo.” Pelo gênio de Dante, o desejo dos navegantes não é, como se esperaria, o anseio de novas terras no horizonte de sua viagem. Claro, a viagem os seduz, mas seu desejo é nostalgia do que eles deixaram atrás, do que perderam por se tornarem viajantes. E perderam o quê? Sobre que perdas se funda a subjetividade moderna -a nossa, livre e andarilha? Este é o custo básico da liberdade e da autonomia que prezamos acima de tudo: a gente renuncia, antes de mais nada, ao calor do lar – aquele lar que nos esperaria ao fim de cada dia, se tivéssemos ficado no campo, com os camponeses de Millet. Alguém dirá: que drama é esse? Perde-se a casa dos pais, mas a gente faz outra. Não tem um ditado que diz: “Quem casa quer casa?”. Tem, sim, e, justamente, uma razão pela qual casar-se é tão complicado, é que a gente casa porque quer não “uma” casa, mas “aquela” casa, a que a gente perdeu e nunca vai reencontrar. Enfim, tudo isso escrito enquanto, justamente, volto para casa.
Folha Equilíbrio/janeiro/2010





















Apontadora de Idéias

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"A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu. (...) Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas... Mas não posso explicar a mim mesma." (Lewis Carroll)

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