Frei Betto *
No próximo ano, espalharei em meu peito sementes de girassol e cobrirei a cabeça com ervas aromáticas, para que a minha pele transpire luz e a minha boca profira perfumes. Não me privarei de suculentas alegrias e nem darei a meu corpo o que não empanturra o espírito.No próximo ano, cultivarei cada um de meus cabelos brancos, modelarei de gorduras a flacidez de minhas carnes e preservarei cioso as rugas que maquiam de sabedoria o meu rosto. Serei belo como o tronco nodoso de uma velha castanheira que, retorcida de braços, abraça o Sol para em seus pés irradiar sombras.
No próximo ano, tratarei o semelhante com a reverência dos anjos e lavarei as portas de minha cidade para acolher em festa os que trazem boas-novas. No contorno dos dias, amarrarei fitas brancas e escovarei a boca da noite até limpar a garganta de sonâmbulas aflições.No próximo ano, não permitirei à língua servir de passarela ao mal-dizer, nem darei ouvidos a quem insiste em violar meu silêncio. Voarei sereno como os albatrozes que, todas as manhãs, impedem que o fragor das ondas fira a pele porosa das praias.No próximo ano, não me deixarei iludir pelos profetas da desgraça, nem me hipnotizar pelos que pincelam de cores vivas os cemitérios. Ficarei atento ao olhar perplexo cravado no rosto encardido dos que suplicam uma côdea de pão e um gole de paz.
No próximo ano, trocarei minhas horas preciosas por horas ociosas e, recostado num banco de parque, darei milho aos pombos e cantarei laudes com os mendigos que, deitados na grama, escarnecem da agonia do tempo. Banharei a minha pele na lagoa pontilhada de moedas faiscantes de prata e, boca aberta sob o chafariz, beberei até embriagar-me de insensatez.No próximo ano, violarei todas as regras da civilidade torpe que me engravata de cabrestos e rasgarei as etiquetas que me fazem perder horas em cuidados supérfluos. Arrancarei do pulso as algemas do relógio que me escravizam ao ritmo implacável de minutos e segundos.No próximo ano, serei irresponsavelmente feliz, liberto dessa onipotência que recobre de fúria a minha excessiva fragilidade. Confessarei a mim mesmo os meus pecados e, crucificado numa roda-gigante, ressuscitarei com a inocência das crianças que sorriem prenhes de vertigens.
• Frei Betto é escritor, autor de “Entre todos os homens” (Ática), entre outros livros.