segunda-feira, 21 de maio de 2012

Circundando a lagoa arredondando a vida
Affonso Romano de Sant'Anna

Então, o que estou lhe dizendo é que neste último domingo a Lagoa Rodrigo de Freitas esteve mais do que nunca linda. Diria, iridescente. Até um chofer de táxi comentou: “Nunca vi essa Lagoa tão cheia de gente tão bonita”.

Vou andando na direção da antiga favela da Catacumba. Que nome mais avesso do que estou vendo agora. A alma hoje está ao sol, livre das catacumbas do noticiário.
Cães. Lindos cães peludos ou não com seus peludos donos e donas bem-tratadas, todos se confraternizando, se cheirando, estudando achegos sob as árvores. Pedalinhos contra o azul, cisnes kitsches, bicicletas ziguezagueantes, carrocinhas, milho verde, água-de-coco. Os quiosques. Almas e corpos ao Sol.
Que pena dos paulistas no Ibirapuera.
Que pena dos argentinos no Parque do Retiro.
Que pena dos americanos no Central Park.
Então, considero esta Lagoa no domingo.
Ninguém veio aqui hoje conclamado para fazer uma demonstração política neste domingo. Ninguém foi chamado para mais um abraço à Lagoa. Ninguém porta faixa de protestos. E, no entanto, o que estou vendo é um imenso manifesto reafirmando a vida.
O nada também é notícia.
Porque as notícias violentas, os conflitos, as explosões, tudo isso, são apenas erupções na superfície.
O nada é que é tudo.
Na verdade, aspiramos ao nada.
Há que estar maduro para o nada. O nada é a coisa mais funda. Os distúrbios, sob forma de acontecimentos, são exercícios de sofrimento, rugas na manhã.
Como se nesse momento todas as tragédias tivessem sido suspensas, as pessoas confluíram para essas margens. Alguém está sendo assassinado, mas não é aqui. Alguém está sendo violentada, mas não é aqui.
É como aquela estorinha que o professor no ginásio contou e que, tantos anos depois, reponta nesta manhã: naquela guerra de 1914-1918, durante o Natal, os chefes das tropas francesas e alemãs decidiram fazer um cessar-fogo para que os soldados celebrassem fraternalmente a data. Os beligerantes chegaram a sair de suas trincheiras e, segundo o professor, alemães e franceses se deram as mãos, cantaram e dançaram.
Confraternizaram por alguns minutos e daí a pouco pularam prá dentro das trincheiras e começaram, de novo, a se matar.
Sempre achei essa estória inacreditável.
Desde sempre acho que este domingo não deveria terminar jamais.
Vou caminhando e pensando na crônica que escreverei para esta quarta-feira. Na cabeça, vários temas, enquanto passam titubeantes bicicletas, cães se enroscam e corpos olímpicos e atléticos desfilam com igual desinibição.
Idéias não faltam para crônica. Nunca tive a síndrome da falta de assunto, senão de excesso. Assunto não falta, sobretudo os ruins. Todos ligados aos problemas do cotidiano, coisas da vaidade política e da perversa economia. Notícias sugerem desdobramentos, há casos por contar, lembranças de viagem, mas hoje não poderia haver notícia mais tocante que a tranqüila felicidade das pessoas em torno desta Lagoa.
Coincidentemente, nesses dias, descobri na Internet um jornal só de boas notícias. Dá prá crer? Só traz informação prá cima. Não é nenhum jornal de Poliana, mas é que a alma da gente quer mesmo descansar, pelo menos no sétimo dia da semana, como fez o Criador.
Uma vez editei, lá em Minas, um “segundo caderno”, e no dia dos mentirosos , no 1º de abril, ousadamente publicamos só notícias que gostaríamos de ter dado e a realidade não deixou. Você sabem, a realidade, às vezes, atrapalha a gente passear na Lagoa. E aquelas boas notícias que inventávamos iam desde a cura do câncer até imaginar que o Brasil estava emprestando dinheiro aos Estados Unidos ou que um time de futebol de várzea havia ganho o campeonato mundial de clubes.
Lá vou contornando a Curva do Calombo. E agora que muitas árvores cresceram, numa versão tropical de “Grande-Jatte”, de Monet, agora que o manguezal deu um acabamento à borda e melhorou a vida dos peixes, agora que as pistas de corrida estão asfaltadas, agora, por favor, salvem as demais lagoas da cidade. Não posso pensar que outras lagoas são estupradas, assassinadas e seqüestradas alhures.
Seu Conde, alcaide-mor desta comarca, não permita que transformem aquilo ali perto do Piraquê em mais um aterro. Está lá o sinal de alarme: já diversas bandeirinhas sinalizam que barcos não devem passar por ali, porque o espelho d’água está rasíssimo. O mato se alastra sobre a terra acumulada. Mais um pouco e algum esperto se apropria de mais uns 300 metros de extensão da Lagoa. Seu Conde, seu Conde, manda logo dragar essa parte, urgentemente, antes que nos seqüestrem mais um pedaço de azul.
E mande também dragar aquela terra que se ajuntou em volta da estátua do indiozinho pescador, feita pelo Pedro Correio de Araújo, hoje exilado em Ouro Preto. Do jeito que está, aquele indiozinho está dando flechada não na água e nos peixes, mas na esperança da gente.
Circundar a Lagoa.
Circundar a vida.
Arredondar a manhã.
Passam corpos falantes:
— Não sei o que ele viu nela.
Passa outro:
— Nunca mais terei outro amante com o mesmo nome do meu marido.
E passa outro:
— Isto tudo depende de como você faz o download.
Há um fascínio no corpo humano. Fico a olhá-lo de soslaio. O das adolescentes com a barriguinha e bundinha no lugar, sob o short leve ou a malha colada à perna. Há os já ajuntando gordurinhas na cintura. Há os sarados e há os desdobrando barrocas volutas.
Ah, se plantassem cerejeiras sob as quais me pus sonhando nesses dias, aquelas que estão florindo roseamente lá nas montanhas enxameadas de vorazes beija-flores, que também só querem o mel das notícias. Ah, se os jardineiros desta cidade gostassem mais de flores que de folhas.
E circundando a Lagoa, circundando a vida, arredondando a crônica e a manhã, dentro de mim ressoa aquela canção na qual a Elizeth – a Divina – ia dizendo: “Luminosa manhã, prá quê tanto azul? Luminosa manhã, tanto azul é demais pro meu coração”.
livro:Tempo de delicadeza



Apontadora de Idéias

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"A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu. (...) Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas... Mas não posso explicar a mim mesma." (Lewis Carroll)

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