quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Meu desejo é que todos os pais leiam esta linda história .

O rio das Quatro Luzes - Mia Couto

Vendo passar o cortejo fúnebre, o menino falou:
- Mãe: eu também quero ir em caixa daquelas.
A alma da mãe na mão do miúdo estremeceu. O menino sentiu esse arrepio, como corrente de corpo se desalmando. A mãe puxou-o pelo braço, em repreensão.
- Não fale nunca mais isso.
Um esticão enfatizava cada palavra.
- Porquê, mãe? Eu só queria ir a enterrar como aquele falecido.
- Viu? Já está falar outra vez?
Ele sentiu a angústia em sua mãe já vertida em lágrima. Calou-se, guardado em si. Ainda olhou o desfile com inveja. Ter alguém assim que chore por nós, quanto vale uma tristeza dessas?
À noite, seu pai foi visitá-lo na penumbra do quarto. O menino colocou a dúvida entre os dois: nunca o pai lhe dirigira um pensamento. O pai avançou uma tosse solene, anunciando a seriedade do assunto. Que a mãe lhe passara os seus soturnos comentários no funeral. Que se passava, afinal?
- Eu não quero mais ser criança.
- Como assim?
- Quero envelhecer rápido, pai. Ficar mais velho que o senhor.
Que valia ser criança, se lhe faltavam meninices? Este mundo não estava para infâncias. Porque nos fazem com esta idade, tão pequenos, se a vida aparece sempre adiada para outras idades, outras vidas? Deviam-nos fazer já graúdos, ensinados a sonhar com conta medida. Mesmo o senhor, meu pai, passa a vida louvando a sua infância, seu tempo de maravilhas. Se foi para lhe roubar a fonte desse tempo, por que razão o deixaram beber dessa água?
- Meu filho, você tem que gostar viver, Deus nos deu esse milagre. Faça de conta que é uma prenda.
Mas ele não gostava dessa prenda. Não seria que Deus lhe podia dar outra, diferente?
- Não diga disso, Deus lhe castiga.
E a conversa não teve mais diálogo. Fechou-se sob promessa de punição divina. O menino permanecia em desistência de tudo. Sem nenhum portanto nem consequência.
Até que certa vez ele decidiu visitar seu avô. Certamente ele o escutaria, com maiores paciências.
- Avô, o que é preciso para se ser morto?
- Necessita ficar nu como um búzio.
- Mas eu tanta vez estou nuzinho.
- Tem que ser leve como lua, além da nuvem.
- Mas eu já sou levinho como a ave penugenta.
- Precisa mais: precisa ficar escuro na escuridão.
- Mas eu sou tinto e retinto. Pretinho como sou até, de noite, me indistinto do pirilipampo avariado.
Então, o avô lhe propôs o negócio. As leis da vida fariam prever que ele fosse retirado primeiro da vida. Pois, ele falaria com Deus e requereria mui respeitosamente que se procedesse a uma troca: o miúdo fosse transferido em lugar do avô.
- A sério, avô? O senhor vai pedir isso por mim?
- Juro, meu filho. Eu amo demais viver. Vou pedir a Deus.
E ficou combinado e jurado. A partir daí, o menino visitava o avô com ansiedade de capuchinho vermelho. Desejava saber se o velho parente não estaria atacado de doença, falho no respirar, coração gaguejado. Mas o avô continuava direito e são.
- Tem rezado a Deus, avô? Tem-lhe pedido consoante o combinado?
Que sim, tinha endereçado os ajustados requerimentos. A troca das mortes, o negócio dos finais. Esperava deferimento ensinado pela paciência. Conselho do avô: ele que, entretanto, fosse meninando, distraído nos brincados. Que ainda agora, o mais que ele se lembrava era o mais antigo de sua existência. E lhe contou os lugares secretos de sua infância, mostrou-lhe as grutas junto ao rio, perseguiram juntos pegadas de bichos. O menino, sem saber, gozava os amplos territórios da infância. No contar do avô o moço se criançava, convertido em menino. A voz antiga era o pátio onde ele se adornava de folguedos. E assim sendo.
Uma certa tarde, o avô visitou a casa dos seus filhos, sentou-se na sala e ordenou que o neto saísse. Queria falar, a sós, com os pais da criança. E o velho deu entendimento: criancice é como amor, não se desempenha sozinha. Faltava aos pais serem filhos, juntarem-se miúdos com o miúdo. Faltava aceitarem despir a idade, desobedecer ao tempo, esquivar-se do corpo e do juízo. Esse é o milagre que um filho oferece - nascermos em tempos nunca havidos. E mais nada falou. Agora, disse ele, já me vou, porque senão ainda adormeço com minhas próprias falas.
- Já assim velho, sou como o cigarro: adormeço na orelha.
Se ergueu e, na soleira, rodou como se tivesse sido assaltado por pedaço de lembrança. E anunciou que estava sofrendo um cansaço. Que era natural, respondeu apressado o filho. O velho emendou, sereno.
- Não é desse cansaços que nos pesam. Ao contrário, agora ando mais celestial que nuvem.
Que aquela fadiga era a fala de Deus, mensagem que estava recebendo na silenciosa língua dos céus.
- Estou ser chamado. Quem sabe esta é nossa última vez?
O casal recusou despedir-se. Acompanharam o avô a casa e sentaram-no na cadeira da varanda. Era ali que ele queria passar a última fronteira. Olhar o rio, lá em baixo. E ali ficou, em silêncio. De repente, ele viu a corrente do rio inverter de direcção.
- Viram? O rio já se virou.
E sorriu. Estivesse confirmando o improvável vaticínio. O velho cedeu às pálpebras. Seu sono ficou sem peso. Antes, ainda murmurou no ouvido de seu filho:
- Diga a meu neto que eu menti. Nunca fiz pedido nenhum a nenhum Deus.
Não houve precisão de mensagem. Longe, na residência do casal, o menino sentiu o reverter-se o caudal do tempo. E ele se achou mais celestial que nuvem. E os olhos do menino se intemporaram em duas pedrinhas. Mas, no leito do rio, se afundaram quatro luzências.
Da feição que fui fazendo vos contei o motivo do nome deste rio que se abre na minha paisagem, frente à minha varanda. O rio das Quatro Luzes.

Apontadora de Idéias

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"A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu. (...) Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas... Mas não posso explicar a mim mesma." (Lewis Carroll)

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