quarta-feira, 28 de outubro de 2009


São Jorge e o dragão
PROFESSOR UNIVERSITÁRIO , no gozo da liberdade que a aposentadoria traz, tinha agora tempo para ler os livros que não lera, fazer as viagens que não fizera, ou simplesmente tempo para vagabundear. Sobravam-lhe as razões para viver o que William Blake escrevera: "No tempo de semear, aprender; no tempo de colher, ensinar; no tempo do inverno, gozar...". Seu inverno chegara. Era tempo de gozar. Mas não foi isso que aconteceu.



Descobriu-se tomado por uma tristeza profunda, um sentimento de falta de sentido para tudo, aquilo a que se dá o nome de depressão.
Minha cabeça, ao se defrontar um enigma, faz o que faziam os gregos: ela inventa histórias, mitos. Pois foi isso que aconteceu. Baixou-me a história que passo a contar para explicar a incapacidade de gozar quando é tempo de gozar
"Desde muitos séculos, são Jorge fora um habitante da Lua. Romântica quando vista da Terra, a Lua era a arena de uma batalha diária entre o santo guerreiro e o dragão da maldade. Todas as manhãs, ao acordar, são Jorge sabia: havia uma missão que só ele poderia cumprir.Era esse sentimento quase religioso de missão e de dever que dava sentido à sua vida. Bem que ele poderia ter matado o dragão séculos antes. Mas ele sabia que, se matasse o dragão, sua vida se transformaria num tédio sem fim: nada pra fazer, nenhuma missão a cumprir. Sua máxima espiritual era "Pugno, ergo sum": luto, logo existo. São as batalhas que dão sentido à vida.
Aconteceu, entretanto, algo de que ninguém suspeitava. O dragão era, na verdade, uma linda donzela que uma bruxa invejosa havia enfeitiçado e mandado para a Lua. Mas como todo feitiço tem um prazo de validade, chegou também o dia quando a validade do feitiço chegou ao fim e o feitiço se desfez: o horrendo dragão foi transformado numa linda donzela.São Jorge, que tudo ignorava, acordou na manhã daquele dia como acordava todos os dias, determinado a cumprir o seu destino -combater o dragão. Com lança, armadura e espada, saiu o guerreiro no seu cavalo. Mas qual não foi o susto quando, em vez de um dragão, o que o esperava era um ser totalmente estranho a ele: uma linda donzela. E a donzela, com suas vestes entreabertas, o recebeu com palavras de amor e gozo: "Venha, Jorginho, provar do meu carinho e do mel dos meus beijos..."
São Jorge ficou paralisado de susto e medo. Não sabia o que fazer. Essa entidade estranha não estava registrada na sua memória. Não lhe fora ensinada na escola. Fora educado a vida inteira para a batalha. Era a batalha que dava sentido à sua vida. E agora ele se defrontava com a possibilidade de simplesmente gozar sem nada fazer...
São Jorge nem desceu do seu cavalo. Voltou para onde viera triste e deprimido, com saudades dos tempos do dragão. O dragão dava sentido à sua vida. Ele definia a sua identidade: ele era um guerreiro... Agora, perdida sua identidade de guerreiro, sua vida havia perdido o sentido.
Não lhe fora ensinada na escola a arte do gozo, de não ter deveres. Sua vida tornou-se então um grande vazio. Quanto à linda donzela, ele olhava para ela e tinha uma saudade imensa dos tempos do dragão...
Aposentadoria é quando o dragão vira donzela, quando a batalha dá lugar ao gozo. Mas isso, simplesmente gozar, não nos foi ensinado. E mergulhamos, então, na tristeza da depressão...
Rubem Alves
fonte:http://www.puntel.com.br/artigos/?CODNOT=82

Apontadora de Idéias

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"A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu. (...) Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas... Mas não posso explicar a mim mesma." (Lewis Carroll)

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