quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Cidadania de berço
Questões como direito e deveres, e participação social dizem respeito à convivência entre as pessoas e, portanto, ao simples e delicado cotidiano das crianças.
Que tipo de gente estará andando pelas ruas daqui a cinco ou vinte anos? Como agirão as pessoas ao pagar a conta no caixa, ao pedir um café na padaria, ao passear pelo parque, ao abrir a porta do elevador, ao telefonar, ao entrar no ônibus, ao esperar na fila do teatro, do estádio de futebol? No fundo, são questões assim que estão em pauta quando a idéia abstrata da cidadania volta a ecoar, às vésperas do Dia da Pátria ou das eleições. Direitos e deveres, participação social, contribuição à democracia, tributo aos heróis, tudo isso diz respeito à convivência entre as pessoas e à sua história comum. Diz respeito, portanto, ao simples e delicado cotidiano das crianças. E aí que se constrói a capacidade de compartilhar, de respeitar e se respeitar, de ser cidadão.


Paradas militares, campanhas oficiais e uma Copa do Mundo a cada quatro anos até que reanimam o sentido de identidade nacional. Por alguns momentos, a emoção envolve e as pessoas podem se sentir pertencentes à nação representada nos belíssimos acordes do Hino. Mas logo passa. Terminado o transe, é cada um por si. E o que pode manter nas pessoas um sentimento de comunidade, um compromisso solidário com os outros, é apenas a disposição individual de pensar e fazer algo para que as coisas coletivas funcionem e beneficiem a todos. A disposição que aparece em pequenas atitudes corriqueiras, como não deixar o carrinho atravessado no corredor do supermercado. Limites
Esta vontade não nasce por si. É fruto do crescimento, da humanização trabalhosa e gradativa que precisa começar na infância. É uma necessidade vital, e por isso é uma responsabilidade inalienável dos pais. São eles que transmitem aos pequenos a noção essencial de cuidar e receber cuidados, e nela estão envolvidas todas as experiências concretas de poder e não poder, de dever e proteção, de prazer e frustração, de amparo e compreensão diante dos sentimentos que fervem a cada momento do dia. Ou seja, é com o “não”, o “chega de TV”, com a hora do banho e da refeição – enfim, com os limites – que se faz a base para uma vida ativa e construtiva.
Mais uma vez, tudo começa na usina do afeto, onde os sentimentos brutos podem se depurar e se fundir, deixando de ser devastadores para se transformar em simples coisas de se sentir, maravilhosas, tristes ou nem tanto. É esta maturidade emocional que dita o grau de disposição para o convívio, para os prazeres e dissabores das relações com as pessoas em casa, no bairro, na boate, na praia ou nas ruas da cidade. Só quem cresce afetivamente pode deixar de ver as frustrações e revoltas diárias como hecatombes capazes de destruí-lo. Daí é possível se abrir para o mundo, sem receio de se desintegrar, sem precisar ser medrosamente truculento ou violento. Então é que se pode pensar também nos outros, e não apenas num fraco e desprotegido euzinho.

Cidadania
Sem esta base para as crianças, o princípio da cidadania está comprometido. Se os pequenos não puderem receber limites claros, coerentes e limpos, sem tom punitivo ou chantagista, se não puderem sentir toda raiva, tristeza e desapontamento causados pelo “não”, sem repressões e julgamentos, não poderão desenvolver sua capacidade afetiva. Os pais que falham aí estão simplesmente deixando de cuidar de seus filhos. São estes filhos que saem pela vida pedindo os limites e o amparo de que precisavam para crescer. À certa altura, grandes e frágeis, só a lei pode ser seu limite. E para provocá-la, farão o que for preciso. São estes os vândalos depredadores, para citar um exemplo menos trágico nesta crônica policial de final previsível.
A lei é, de fato, a versão adulta dos limites, e bem que poderia ajudar os grandes órfãos a ter alguma sensação de estar recebendo cuidados. Mas o Estado, construído para isso, não anda lá muito capaz de exercer esta paternidade exigente e protetora. Talvez porque em seu comando haja maiores abandonados demais. Fica difícil até para os cidadãos afetivamente emancipados exercerem a cidadania. Afinal, alguém só pode se sentir plenamente cidadão quando sente que os representantes da sua comunidade o vêem como importante, o ouvem e consideram aquilo que diz, quando estabelecem leis minimamente humanas que limitam a satisfação de suas vontades mas também o protegem das vontades alheias, da violência, do engodo, da manipulação, da mentira...

Respeito
Sente-se plenamente cidadão quem recebe educação, saúde e segurança, quem vê sua família atendida em suas necessidades para uma vida digna. Só quem é concretamente reconhecido como um sujeito de valor pode se sentir co-proprietário e responsável pela praça, pelo telefone público, pela vidraça da escola, pelo ar, pela floresta, pelo planeta, e então pode se lembrar naturalmente de manter limpa a praia no feriadão. Ou seja, não há hoje muitas ferramentas para criar cidadãos a partir da ação do Estado. Será uma boa ajuda se pelo menos as escolas, os grupos religiosos e as ONGs puderem oferecer cuidados. Mas em nenhum lugar estes cuidados poderão criar o afeto que permite cumprir a lei por vontade própria. Isso só se cria em casa.
A cidadania afetiva e efetiva que se constrói a partir da infância nada tem a ver com rigidez, com combinação, com “fazer certinho” e de forma sistemática, com a política e ecologicamente corretos ou quaisquer outras camisas-de-força pós-modernas. É a noção de que o bem-estar de cada um depende do cuidado que se oferece e se recebe num círculo de trocas. É gostar de respeitar e ser respeitado. Mesmo que o País faça pouco por seus indivíduos, os cidadãos emancipados não precisam ficar à espera de “padrinhos” que ofereçam proteção e cuidados ilusórios quando se infiltram nas instituições. Não precisam do rouba-mas-faz (de conta que cuida das pessoas). Têm força para enfrentar o abandono, e até para cuidar dos outros. É esta capacidade de afeto que torna possível construir uma comunidade nacional, algo mais do que uma platéia de desfile, uma torcida de milhões que enrola e esquece suas bandeiras no fim de cada Copa.
Texto extraído do Jornal Gazeta do Povo
06/09/1998
Ivan Capelatto
e especialistas convidados.


Apontadora de Idéias

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"A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu. (...) Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas... Mas não posso explicar a mim mesma." (Lewis Carroll)

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