sábado, 15 de janeiro de 2011

A gente precisa se ver mais
Meu amigo realizou o sonho de uma nova e bela casa e estamos, alguns casais e amigos, ali, para jantar e conversar. Matar saudades. Vivemos as peripécias dos anos 60, aquela coisa dos hippies, da utopia e da repres¬são. Estamos já de cabelos brancos, os que têm cabelos. De óculos. Falamos de filhos, de netos, de cachorros. São todos, de alguma maneira, bem-sucedidos em suas profissões. E, naturalmente, falamos mal do governo. Deste ou de qualquer outro.Alguns foram viver no estrangeiro exilados, outros foram para estudar. Mas voltamos. E, no clima amigável da conversação solta, a memória vai se aquecendo, os fatos vão ressurgindo, e, de repente, abole-se o tempo, confunde-se o ontem e o hoje. É tudo celebração. Celebração da vida vivida como um filme entrecortado que tivesse tido vários diretores.


- Onde estava você quando mataram Kennedy?- Onde estava você quando Getúlio se matou?- Onde estava você em abril de 64?- Where were you when they crucifica My Lord?Quando saem todos, lá pelas duas da manhã, uma frase circula no ar: "A gente precisa se ver mais". A gente se promete telefonar, marcar encontro, enfim, "se ver mais". Frase banal. No entanto, penso em como é diferente quando falada entre jovens. Aliás, jovem não fala assim. Diz: "Cara, pó! Você sumiu! Vamos no apê de fulana hoje, vai rolar um agito legal lá." Ou seja, os jovens marcam encontros para dominar o espaço. Incorporados às tribos noturnas, ficam zanzando de um bar para outro, de uma praia para outra, de um esporte para outro, conferindo espacialmente o que está ocorrendo em outros lugares. Os jovens estão desbravando corpos, e para eles o mundo é uma coisa muito ampla e distante, algo que começa depois do círculo de giz narcísico que os contém.Entre pessoas maduras, é diferente.

Desbrava-se o conhecido. O conhecimento é re-conhecimento. Não é o espaço, o tempo é que importa. Estar juntos é como estar ao redor de uma fogueira recontando a própria vida. Isto se parece também com guerreiros meio exaustos, com meia glória apenas, contando fragmentos de uma batalha ganha e perdida. E já que os presentes viveram experiências semelhantes, um é a memória do outro, o espelho do outro. É um exercício de reunir fragmentos de vida, reachar em nós a imagem de ontem e reter um pouco o presente que se esvai. Tem, de certo modo, o sentido de carpe diem. Um carpe diem meio retroativo, olhando o retrovisor. Estamos curtindo o presente densamente, como quem toma um velho e bom vinho.Mas há algo mais além da constatação de que os jovens vivem mais no espaço e os mais velhos vivem mais no tempo. Para os mais idosos nessas reuniões, a própria linguagem tem outra função.


Linguisticamente, os jovens têm mais uma fala denotativa e fática, cheia de exclamações, interjeições, poucas palavras. Não é uma linguagem dissertativa prenhe de memórias, reverberando muitas conotações como proustianamente é o caso dos adultos. O jovem conversa sobre o presente e faz rápidas alusões ao futuro. O adulto conversa retroativamente. O passado cresce continuamente, ilumina o presente e delega aos outros o futuro."A gente precisa se ver mais" significa também que nosso tempo está se esgotando, e reencontrar-se é, por um instante, conseguir suspender o tempo, povoar, alargar mais a própria vida. Parece que cada um tem uma mochila, uma bagagem qualquer, e que vai abrindo esse farnel de lembranças a ser servido na mesa comum.Essa coisa de estar juntos, vou dizer, nem precisa ser algo muito palrador, muito risonho, festivo. Existe um tipo de companheirismo silencioso, tipo cinema mudo, ou, mais pateticamente, tipo diálogo mudo de sombras. Se alguém quiser ficar calado ali, pode.Uma vez li que Samuel Beckett e não sei mais quem costumavam se sentar num café em Paris e ficar ali silenciosos madrugada adentro olhando, para onde? Para fora e para dentro, num silêncio estranhíssimo. Quer dizer, calados, se faziam companhia. Um animado papo silencioso.

Lembram-se daquela canção do Paulinho da Viola em que duas pessoas se cruzam rapidamente pela rua e vão prometendo se ver, se telefonar, enfim, reunir o que a vida dispersa e fragmenta?Pois é, a gente precisa se ver mais...
(Affonso Romano de Sant’Anna ,Tempo de delicadeza)
Recadinho para algumas amigas queridíssimas : Beth G., Adriane F., Adriane B., Estela F. , Glórinha, Bel F. , Regina B., Rosinha L., Carmem M,karina C.,
A gente precisa se ver mais...bjs

Apontadora de Idéias

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"A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu. (...) Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas... Mas não posso explicar a mim mesma." (Lewis Carroll)

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