segunda-feira, 25 de abril de 2011



O VÔO DA ÁGUIA


Já que estamos nesse clima de recomeçar, com a alma limpa para novas coisas, vou iniciar transcrevendo algo que recebi. Havia pensado em outra crónica, coisa tipo "propostas para um novo milénio", como o fez Ítalo Calvino. Mas às vezes um texto parabólico, elíptico, pode nos dizer mais que outros pretensamente objetivos.


Ei-lo:"A águia é a única ave que chega a viver 70 anos. Mas para isso acontecer, por volta dos 40, ela precisa tomar uma séria e difícil decisão.Nessa idade, suas unhas estão compridas e flexíveis. Não conseguem mais agarrar as presas das quais se alimenta. Seu bico, alongado e pontiagudo, curva-se. As asas, envelhecidas e pesadas em função da espessura das penas, apontam contra o peito. Voar já é difícil.Nesse momento crucial de sua vida a águia tem duas alternativas: não fazer nada e morrer, ou enfrentar um dolorido processo de renovação que se estenderá por 150 dias.


A nossa águia decidiu enfrentar o desafio. Ela voa para o alto de uma montanha e recolhe-se em um ninho próximo a um paredão, onde não precisará voar. Aí, ela começa a bater com o bico na rocha até conseguir arrancá-lo. Depois, a águia espera nascer um novo bico, com o qual vai arrancar as velhas unhas. Quando as novas unhas começarem a nascer, ela passa a arrancar as velhas penas. Só após cinco meses ela pode sair para o voo de renovação e viver mais 30 anos.


"Esse texto foi mandado como um cartão de fim de ano pela Rose Saldiva, da Saldiva Propaganda. Tem mais um parágrafo explicitando, comentando essa parábola e o titulo geral é "Renovação".Achei que você ia gostar de tomar conhecimento disto, sobretudo quando Janeiro nos inunda com sua luz.Este texto vale mais que mil ilustrações.Sei como é difícil uma nova ou surpreendente ideia para cartão de fim de ano. Mas esse, além de bater fortemente em nosso imaginário, dispara em nós uma série de correlações e desdobramentos.


A: abertura é seca e forte. Não há uma palavra sobrando. Parece as batidas do destino na Quinta Sinfonia de Beethoven. Releiam. "A águia é a única ave que chega a viver 70 anos. Mas para isso acontecer, por volta dos 40, ela precisa tomar uma séria e difícil decisão.” ·Já li em algum lugar que Jung dizia que, em torno dos 40, alguma coisa subterrânea começa a ocorrer com a gente e os seres humanos sentem que estão no auge de sua força criativa. É quando podem (ou não) entrar em contacto com forças profundas de sua personalidade.Já ouvi de especialistas em administração de empresas que tem uma hora em que elas começam a crescer e seus dirigentes têm que tomar uma decisão — ou fazem com que cresçam de vez assumindo mais pesados desafios ou, então, fecham, porque ficar estagnado é apenas adiar a morte.Já mencionei em outras crónicas o personagem Jean Barois (de Roger Martin du Gard) que fez um testamento aos 40 anos, quando achava que estava no auge de sua potência intelectual, temendo que na velhice, carcomido e alquebrado, fizesse outro testamento que negasse tudo aquilo em que acreditava quando jovem. Com efeito, envelhecendo, fez realmente outro testamento que desautorizava e desmentia o anterior. É que sua perspectiva na trajectória da vida mudara, como muda a de um viajante ou a do observador de um fenómeno.O ano está começando.Mais grave ainda: um século está se iniciando.Gravíssimo: mais que um ano, mais que um século, um novo milénio está se inaugurando.Três vezes Sísifo: o ano, o século, o milénio.


Sísifo — aquele que foi condenado a rolar uma pedra montanha acima, sabendo que quando estivesse quase chegando no topo — cataprum!... a pedra despencaria e ele teria que empurrá-la, de novo, lá para o alto.Pois bem: "A águia é a única ave que chega a viver 70 anos. Mas para isso acontecer, por volta dos 40 anos, ela precisa tomar uma séria e difícil decisão. Nesta idade suas unhas estão compridas. Não conseguem mais agarrar as presas das quais alimenta. Seu bico, alongado e pontiagudo, curva-se. As asas, envelhecidas e pesadas em função da espessura das penas, apontam contra o peito. Voar já é difícil.” ·Nossa sociedade pensou ter inventado uma maneira de resolver, nos seres humanos, o drama da águia: a cirurgia plástica. Silicone aqui e acolá, repuxar a pele acolá e aqui, pintar e implantar cabelos. Isto feito, a águia sai flanando pelos salões, praias, telas, ruas, escritórios e passarelas.


Mas aquela outra águia prefere uma solução que veio de dentro. Talvez mais dolorosa. Recolher-se a um paredão, destruir o velho e inútil bico, esperar que outro surja e com ele arrancar as penas, num rito de reiniciação de 150 dias.Então a águia, digamos, acabou de descasar.(Tem que redimensionar seu corpo e seus desejos, desmontar casa e sentimentos, realocar objectos e sensações, reassumir filhos.)Então a águia, digamos, acabou de perder o emprego.(Tem que descobrir outro trajecto diário, outras aptidões, enfrentar a humilhação.)Então, a águia,digamos, acabou de mudar de país.(A crise ou o amor levou-a a outras paragens, tem que reaprender a linguagem de tudo e reinventar sua imagem em outro espelho.)Então, a águia, digamos, acabou de perder alguém querido.(É como se uma parte do corpo lhe tivessem sido arrancada, sente que não poderá mais voar como antes, que o azul lhe é inútil.)Então, a águia, digamos, está numa nova situação em que está sendo desafiada a mostrar sua competência.(Tem medo do fracasso, acha que não terá garras nem asas para voar mais alto.)Então, a águia, digamos, andou olhando sua pele, sua resistência física, certos achaques de velhice.Pois bem. Há que jogar fora o bico velho, arrancar as velhas penas, e recomeçar.


Época de metamorfose.Os estudiosos da metamorfose dizem que não apenas larvas se transformam em borboletas. Para nosso espanto as próprias pedras passam também por silenciosas metamorfoses.Enfim, parece que estamos condenados à metamorfose. Morrer várias vezes e várias vezes renascer. Até que, enfim, cheguemos à metamorfose final, onde o que era sonho e carne se converte em pó.Mas que fique sempre no azul o imponderável voo da águia.
Affonso Romano de Sant'Anna

9 comentários:

  1. Oi.Eliete. Conheço a saga da águia e é mesmo muito bonito,seu processo de reneração,de recomeço. É a natureza nos ensinando a viver. Beijos e linda semana.

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  2. Bom dia, Eliete!!

    Perfeito este texto!Parece cruel,mas o que sentimos como crueldade nada mais é que o apego ao velho...o medo do novo!!
    Calou fundo no meu coração!Encontrou eco!
    Quando tudo parece muito parado...as coisas não fluem...sinto a necessidade da mudança, de renovar!
    Um texto de uma beleza e uma sensibilidade incríveis!Imagine a tristeza se não pudéssemos escolher?Se todos estivessem fadados a estagnação...
    Se renovar pode dor...mas sempre vale à pena!!
    Amei!!!!Obrigada!
    Beijos querida!!
    Lindo início de semana!!

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  3. Minha querida! passar por aqui é sempre um benção, faz um bem danado...fico feliz por ter te achado bjsssss

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  4. Eliete querida.
    Penso que nos metamorfoseamos,todos os dias. É necessário.Todos os dias,renascemos de uma maneira ou de outra. Não sei se isso é bom, mas que é necessário, ah isso é.

    Obrigada por sua amizade amiga.
    Boa semana pra ti!

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  5. Assim , incorporando a idéia no mais profundo do meu ser, aos quarenta, simplesmente, engravidei...e foi ótimo (rs)
    Um abraço

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  6. Afonso Romano soube bem explorar e explicar esa transformação.
    ]

    Lindo! Obrigado pelo teu carinho,beijos e um dia lindo!chica

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  7. Espetacular este post Eliete

    Não sabia desta particularidade da águia, e além de informativo, a mensagem de renovação do texto é maravilhosa.

    Boa semana!

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  8. Se renovar trás esperança, fé, sem essas é difícil seguir...
    Bjooo!

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  9. Eliete lindo texto, muito mesmo, já conhecia e fizemos um mês curso a respeito da águia o nome do grupo era instinto da criatividade. Foi muito positivo, pois brotaram emoções jamais sonhadas no decorrer do curso e reler foi uma benção estou tomado de emoções pelo texto que trazes com algo há mais além.

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"A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu. (...) Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas... Mas não posso explicar a mim mesma." (Lewis Carroll)

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