segunda-feira, 19 de outubro de 2015




Nó na linha

Ninguém deve esquecer o que acha importante.
J.M.Coetzee

Minha avó queria me ensinar a costurar e eu desejava costurar tal qual ela o fazia.
O movimento daqueles pés no pedal de sua máquina de costura era fascinante!

Como controlar com os pés a velocidade dos pedais e, ao mesmo tempo, ter tanta agilidade com as mãos?

Pernas fortes e decididas eram o vapor de sua máquina de costura e, em pouco tempo, eis, em minhas mãos, um lindo vestido. Como desejei ganhar aquela máquina de costurar sonhos; como sonhei sentar naquela cadeira e dominá-la, como se faz com um cavalo bravo ou como um exímio maquinista de trem que leva seus vagões pelas estradas sinuosas!

Mas...  quando me deparei com os outras tarefas da costura, o fascínio foi esmaecendo-se. Colocar a linha na agulha, dar o nó na linha eram gestos difíceis demais.
Meus dedos relutavam; não me obedeciam, mostravam-se desajustados e recusavam-se a dar o nó na linha. Desmanchar a costura, cerzir, alfinetar, passar carbono e carretilha eram decepcionantes!

O desejo de costurar ficou órfão; a paciência bateu em retirada, e eu?  Somente pensava em acompanhá-la.
Demasias! Não suportava a precisão que a costura exigia.

Por fim constatei, com um  certo  alívio e com muita tristeza, que não possuía as habilidades necessárias para tão grande Arte.
Costurar não foi a primeira dificuldade que encontrei, mas quis a memória guardar  a experiência do primeiro nó na linha da minha vida.

Sei que minha avó percebeu toda dificuldade, mas nunca se zangou nem me criticou. Continuou amando-me com a mesma intensidade.

Hoje, muito tempo depois, sei que seu amor e dedicação não foram em vão. Não me tornei uma costureira exímia, mas penso que essa inabilidade em fazer o nó na linha acompanha-me e,  de uma certa  forma, lucro com isso à medida que procuro enfrentar, com um pouco menos de confusão, as situações adversas que acontecem em minha vida.

texto:Eliete T. Cascaldi Sobreiro publicado no jornal :

O COMBATE

Imagem da internet


terça-feira, 6 de outubro de 2015

Barcos ao léu


Chove torrencialmente lá fora. A chuva varre os telhados, afoga as calhas, lava carros e ruas. É a estação das chuvas. Dentro, uma vela e fósforos estão a postos, caso, falte a luz. As crianças estão eufóricas. Correm da porta à janela de vidro para verem a enxurrada que está se formando. É um misto de sentimentos; medo e alegria fazem com que elas desejem a chuva e, ao mesmo tempo, anseiem que passe depressa.

A atenção é toda voltada para a enxurrada, o quanto ela está grande.
O jogo de botão, as bonecas o ferrorama e todos os outros brinquedos, por hora, estão totalmente esquecidos. As crianças esperam a ordem do capitão-pai para começarem a executar os barcos que deverão zarpar com uma difícil missão.

Apesar da fragilidade do material, acreditam que seus barcos irão muito longe, alcançando lugares desconhecidos e levando mensagens para quem os encontrar. Os barcos são pintados com bandeiras desse mundo, com o endereço de sua origem e com o nome dos construtores. É uma tarefa e tanto, logo não é possível postergar... atrasar...
 A enxurrada pode passar depressa demais, e não esperar pelas embarcações.

 A chuva, aos poucos, acalma e as crianças junto com o capitão – pai  correm até a beira da calçada para colocarem seus barcos que, amedrontados,   oscilam  com o volume e com o movimento impetuoso das águas. Alguns sucumbem assim que saem, outros seguem vigorosos e corajosamente em direção do bueiro- local misterioso - onde se define o futuro das embarcações.

Naus que são tragadas pelo ventre dos bueiros dando-lhes direção e força para prosseguirem em sua jornada.
As crianças retornam às suas casas ávidas de esperanças de que os barquinhos irão encontrar novos mundos, terras virgens, homens gigantes e que desejarão conhecê-las.
Dormir e sonhar com esse encontro é o que lhes restam fazer naquele momento; sonhar com as naus e suas infinitas possibilidades de um novo devir.



E, se tiverem sorte, esse devir estará sempre vivo e ressoando em suas mentes adultas, trazendo-lhes a capacidade de celebrar o cotidiano como uma eterna revelação.

texto: Eliete T. Cascaldi Sobreiro
imagem: internet
Artigo publicado no jornal O COMBATE

Apontadora de Idéias

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"A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu. (...) Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas... Mas não posso explicar a mim mesma." (Lewis Carroll)

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