domingo, 13 de fevereiro de 2011


Canção de Homens e Mulheres Lamentáveis
Antônio Maria

Esta noite... esta chuva... estas reticências.
Sei lá.
Quem seria capaz de abrir o peito e mostrar a ferida?
De dizer o nome?
De lembrar, sequer lembrar, o rosto?
Quem seria capaz de contar a história?
De chamar o maior amigo, ou melhor, o inimigo, e dizer:
— Estou me sentindo assim, assim, assim...
A humanidade está necessitando, urgentemente, de afeto e milagre.
Mas não sabe onde estão as mãos, nem os deuses.
E, quando souber, vai achar que as mãos e os deuses são de mentira.
Os olhos de todos estarão cheios de medo, os olhos das jovens raparigas, os olhos, os braços, o ventre e as pernas das jovens raparigas, receosos de pagar com os quefazeres do sexo.
Nesta noite, com esta chuva, as jovens raparigas não são importantes. Apenas uma tem importância.
Mas quem seria de todo livre e descuidado, a ponto de dizer o seu nome?
De pensar o seu nome?
Você diria em público o nome da Amada?
E suportaria ouvi-lo?
Não, não; o nome dela, em sua boca ou na dos outros, é tão proibido como sua nudez (dela).
Não há diferença.
E por que você não se transforma no homem banal, que se encharca de álcool, para apregoar a desdita?
Seria mais fácil.
Talvez alguém lhe chamasse de porco e você revidasse com um soco no rosto, um só rosto, de todo o Gênero Humano. Viria a polícia, que simplifica tudo, generalizando.
E tudo se transformaria em notícia:
"Preso o alcoólatra, quando injuriava e agredia a Família Brasileira, na pessoa de um sócio do Country".
Há poucos minutos, em meu quarto, na mais completa escuridão, a carência era tanta que tive de escolher entre morrer e escrever estas coisas.
Qualquer das escolhas seria desprezível.
Preferi esta (escrever), uma opção igualmente piegas, igualmente pífia e sentimental, menos espalhafatosa, porém.
A morte, mesmo em combate, é burlesca.
Uma pergunta, que não tem nada a ver com o corpo desta canção.
Quem saberia discriminar o ódio do amor?
Ninguém.
Os psicologistas e analistas têm perdido um tempo enorme.
Ontem à noite, voltando para casa, senti-me espectador de mim mesmo.
E confesso que, pela primeira vez, não achei a menor graça.
Saíra, pela primeira vez, de óculos e o porteiro do edifício me recebeu com esta agradável pergunta:
— Que é que houve? O senhor está mais velho?
Tirei os óculos e, fitando-o, esperei as desculpas.
Mas o homem continuou:
— O que é que houve?
De ontem para cá, o senhor envelheceu.
Tinha pensado que, sem os óculos...
Não estou escrevendo para ninguém gostar ou, ao menos, entender.
Estou escrevendo, simplesmente, e isto me supre: contrabalança, quando nada.
Esta noite, esta chuva — e poderia escrever as coisas mais alegres, esta noite.
Neruda, coitado, as mais tristes.
Só há uma vantagem na solidão: poder ir ao banheiro com a porta aberta.
Mas isto é muito pouco, para quem não tem sequer a coragem de abrir a camisa e mostrar a ferida.
(9/10/1964)

3 comentários:

  1. Boa Tarde Eliete!!!

    Pois veja,estamos carentes sim...e de todo o tipo de atenção,ás vezes quando nos olham parecem que os olhares nos transpassam.
    Mas com pequeninos gestos...podemos fazer a nossa parte,um sorriso,uma palavra,uma gentileza.
    Um grande beijo

    ResponderExcluir
  2. Pense e perceba estas palavras: Singelo e sentimental. Assim percebi este texto vida pulsando nos sentimentos. Lembra um pouco de tudo filosófico, poético, místico. Buscar e pescar o que puder no sagrado instante da vida que o texto foi criado.

    ResponderExcluir
  3. 'Há poucos minutos, em meu quarto, na mais completa escuridão, a carência era tanta que tive de escolher entre morrer e escrever estas coisas...'
    ...
    'Estou escrevendo, simplesmente, e isto me supre: contrabalança, quando nada.'

    É assim que me encontro por muitas vezes.

    Quando li a frase desse pernambucano pela primeira vez, me inquietei com a identificação imediata.

    Sempre que venho aqui encontro um belo post.
    Beijos

    ResponderExcluir

Apontadora de Idéias

Minha foto
São Paulo, Brazil
"A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu. (...) Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas... Mas não posso explicar a mim mesma." (Lewis Carroll)

Arquivo do blog