Affonso Romano de Sant'Anna
Então, o que estou lhe dizendo é
que neste último domingo a Lagoa Rodrigo de Freitas esteve mais do que nunca
linda. Diria, iridescente. Até um chofer de táxi comentou: “Nunca vi essa Lagoa
tão cheia de gente tão bonita”.
Vou andando na direção da antiga
favela da Catacumba. Que nome mais avesso do que estou vendo agora. A alma hoje
está ao sol, livre das catacumbas do noticiário.
Cães. Lindos cães peludos ou não
com seus peludos donos e donas bem-tratadas, todos se confraternizando, se
cheirando, estudando achegos sob as árvores. Pedalinhos contra o azul, cisnes
kitsches, bicicletas ziguezagueantes, carrocinhas, milho verde, água-de-coco.
Os quiosques. Almas e corpos ao Sol.
Que pena dos paulistas no
Ibirapuera.
Que pena dos argentinos no
Parque do Retiro.
Que pena dos americanos no
Central Park.
Então, considero esta Lagoa no
domingo.
Ninguém veio aqui hoje
conclamado para fazer uma demonstração política neste domingo. Ninguém foi
chamado para mais um abraço à Lagoa. Ninguém porta faixa de protestos. E, no
entanto, o que estou vendo é um imenso manifesto reafirmando a vida.
O nada também é notícia.
Porque as notícias violentas, os
conflitos, as explosões, tudo isso, são apenas erupções na superfície.
O nada é que é tudo.
Na verdade, aspiramos ao nada.
Há que estar maduro para o nada.
O nada é a coisa mais funda. Os distúrbios, sob forma de acontecimentos, são
exercícios de sofrimento, rugas na manhã.
Como se nesse momento todas as
tragédias tivessem sido suspensas, as pessoas confluíram para essas margens.
Alguém está sendo assassinado, mas não é aqui. Alguém está sendo violentada,
mas não é aqui.
É como aquela estorinha que o
professor no ginásio contou e que, tantos anos depois, reponta nesta manhã:
naquela guerra de 1914-1918, durante o Natal, os chefes das tropas francesas e
alemãs decidiram fazer um cessar-fogo para que os soldados celebrassem
fraternalmente a data. Os beligerantes chegaram a sair de suas trincheiras e,
segundo o professor, alemães e franceses se deram as mãos, cantaram e dançaram.
Confraternizaram por alguns
minutos e daí a pouco pularam prá dentro das trincheiras e começaram, de novo,
a se matar.
Sempre achei essa estória
inacreditável.
Desde sempre acho que este
domingo não deveria terminar jamais.
Vou caminhando e pensando na
crônica que escreverei para esta quarta-feira. Na cabeça, vários temas,
enquanto passam titubeantes bicicletas, cães se enroscam e corpos olímpicos e
atléticos desfilam com igual desinibição.
Idéias não faltam para crônica.
Nunca tive a síndrome da falta de assunto, senão de excesso. Assunto não falta,
sobretudo os ruins. Todos ligados aos problemas do cotidiano, coisas da vaidade
política e da perversa economia. Notícias sugerem desdobramentos, há casos por
contar, lembranças de viagem, mas hoje não poderia haver notícia mais tocante
que a tranqüila felicidade das pessoas em torno desta Lagoa.
Coincidentemente, nesses dias,
descobri na Internet um jornal só de boas notícias. Dá prá crer? Só traz
informação prá cima. Não é nenhum jornal de Poliana, mas é que a alma da gente
quer mesmo descansar, pelo menos no sétimo dia da semana, como fez o Criador.
Uma vez editei, lá em Minas, um
“segundo caderno”, e no dia dos mentirosos , no 1º de abril, ousadamente
publicamos só notícias que gostaríamos de ter dado e a realidade não deixou.
Você sabem, a realidade, às vezes, atrapalha a gente passear na Lagoa. E
aquelas boas notícias que inventávamos iam desde a cura do câncer até imaginar
que o Brasil estava emprestando dinheiro aos Estados Unidos ou que um time de
futebol de várzea havia ganho o campeonato mundial de clubes.
Lá vou contornando a Curva do
Calombo. E agora que muitas árvores cresceram, numa versão tropical de
“Grande-Jatte”, de Monet, agora que o manguezal deu um acabamento à borda e
melhorou a vida dos peixes, agora que as pistas de corrida estão asfaltadas,
agora, por favor, salvem as demais lagoas da cidade. Não posso pensar que
outras lagoas são estupradas, assassinadas e seqüestradas alhures.
Seu Conde, alcaide-mor desta
comarca, não permita que transformem aquilo ali perto do Piraquê em mais um
aterro. Está lá o sinal de alarme: já diversas bandeirinhas sinalizam que
barcos não devem passar por ali, porque o espelho d’água está rasíssimo. O mato
se alastra sobre a terra acumulada. Mais um pouco e algum esperto se apropria
de mais uns 300 metros
de extensão da Lagoa. Seu Conde, seu Conde, manda logo dragar essa parte,
urgentemente, antes que nos seqüestrem mais um pedaço de azul.
E mande também dragar aquela
terra que se ajuntou em volta da estátua do indiozinho pescador, feita pelo
Pedro Correio de Araújo, hoje exilado em Ouro Preto. Do
jeito que está, aquele indiozinho está dando flechada não na água e nos peixes,
mas na esperança da gente.
Circundar a Lagoa.
Circundar a vida.
Arredondar a manhã.
Passam corpos falantes:
— Não sei o que ele viu nela.
Passa outro:
— Nunca mais terei outro amante
com o mesmo nome do meu marido.
E passa outro:
— Isto tudo depende de como você
faz o download.
Há um fascínio no corpo humano.
Fico a olhá-lo de soslaio. O das adolescentes com a barriguinha e bundinha no lugar,
sob o short leve ou a malha colada à perna. Há os já ajuntando gordurinhas na
cintura. Há os sarados e há os desdobrando barrocas volutas.
Ah, se plantassem cerejeiras sob
as quais me pus sonhando nesses dias, aquelas que estão florindo roseamente lá
nas montanhas enxameadas de vorazes beija-flores, que também só querem o mel
das notícias. Ah, se os jardineiros desta cidade gostassem mais de flores que
de folhas.
E circundando a Lagoa,
circundando a vida, arredondando a crônica e a manhã, dentro de mim ressoa
aquela canção na qual a Elizeth – a Divina – ia dizendo: “Luminosa manhã, prá
quê tanto azul? Luminosa manhã, tanto azul é demais pro meu coração”.
livro:Tempo de delicadeza
Que texto mais interessante e gostoso de ler, Eliete. Parabéns. Beijos.
ResponderExcluirMuito lindo e esses retalhos de conversas que ouvimos dá pra escrever muito!! beijos,lindo dia!chica
ResponderExcluirBelíssimo texto... deixa o dia mais leve... mesmo que não seja um ensolarado domingo!
ResponderExcluirBjs com carinho
Dri
Oiii minha flor!!!
ResponderExcluirMeu Deus, amei o texto, poético, leve e ao mesmo tempo realista...
Quem é o autor??
Sabe que ando precisando de umas boas crônicas?? hehe...
Tem sugestões?? E aquele livro que falasse, é bom???
Beijãoooo e bom finde!!!