segunda-feira, 28 de novembro de 2011



Um nenhum (Viviane Mosé)


(Publicado no site da agência Carta Maior, na sequência de cartas endereças “Ao arqueólogo do futuro”.)


Senhor arqueólogo, foi muito difícil encontrar um lugar a partir do qual pudesse me dirigir ao senhor. Infinitas são as perspectivas que nosso tempo nos permite, desintegrado que está por tantas razões que não caberiam nesta cartinha. Então, resolvi falar de um lugar comum.




O lugar de um homem. Todo homem é comum mesmo não sendo. O não ser comum do homem parece estar em sua forma própria de ser comum. Em seu jeito singular de sofrer, brincar, envelhecer. Em sua necessidade de construir, simbolizar, criar. Um homem não deixa de ser comum mesmo entre letras, livros, máquinas, sistemas, signos.


Um homem é sempre uma trajetória que declina.


Que ascende, mas que declina. O comum do homem é sua aparição relâmpago, o seu constituir e o seu perecer. O comum do homem é sua necessidade de dizer, manifestar, inscrever, perpetuar. Ao mesmo tempo sua impossibilidade de permanecer. Todo homem constitui-se na tensão entre viver e morrer, entre dizer e calar, entre subir e descer. Mas, por razões extensas e difíceis, a história humana parece ter se ordenado em torno da vontade de não ser.




Não envelhecer, não sentir dor, não se cansar, não se aborrecer. O homem parece envergonhar-se de ser: pequeno, sensível, mortal, humano. E organiza-se em torno de um ideal de homem, sem corpo. O homem envergonha-se de seu corpo. Não de seu sexo ou de seu prazer, mas de suas vísceras, de seus excrementos, de seus sons e odores, de seu processo bioquímico, fisiológico, orgânico. O homem envergonha-se de morrer e vai acuando-se, escondendo-se, perdendo-se em torno de uma idéia, de uma imagem.




Em sua luta por não ser comum, o homem tornou-se nenhum. Todo homem virou nenhum. Nenhum homem na rua, em casa. Nenhum homem na cama. Nenhum homem, mas um nome. O homem se reduziu a um nome. Não um nome próprio, mas um substantivo. Mas um homem é sempre maior que um nome mesmo que não queira. E uma outra história foi sendo tecida por trás desse desejo de não ser. Enquanto construía seus mecanismos de não corpo, enquanto se constituía como idéia, pensamento, imagem, a humanidade proliferava em seus excessos contidos, em suas angústias não canalizadas, em suas paixões não vividas, em seus pavores maquiados. E um corpo invertido, nascido de tantos corpos abafados, foi constituindo-se socialmente, foi ganhando força e vida.




Uma vida invertida, mas uma vida. Tóxica, ela foi se alastrando pelas casas, pelas ruas, em forma de morte. A morte negada, as perdas e dores abafadas, saíram às ruas reivindicando seu espaço. O que antes esteve circunscrito aos campos de batalha, às margens, aos guetos, agora ganha as escolas, os metrôs, os restaurantes, as praias. Não há mais lugar seguro, carros blindados, condomínios fechados. Agora todos somos igualmente passíveis.


Vivemos a democratização da violência. Vivemos o predomínio daquilo que foi por tanto tempo obstinadamente negado. A violência trouxe-nos de volta a urgência pelo corpo, pela vida, pelo tempo. E apartou-nos de nosso sonho de perenidade, de futuro, de verdade. Agora, todos estamos órfãos de nosso medíocre projeto de felicidade. Agora é preciso viver, temos urgência do instante, precisamos do corpo, mesmo gordo, magro, estrábico. E aqui, de meu lugar comum, de mulher comum, enquanto lavo a louça do café olhando a cor insistente da tarde que passa, me pergunto por quê? Por que não os dias nublados, as dores do parto, os serviços domésticos? Por que não o escuro, o delírio, a solidão? As lágrimas, os espinhos no pé, as quedas?



Dizem que o homem, como conhecemos, tende a desaparecer. É possível que uma espécie mais forte possa surgir, uma espécie capaz de um dia divertir-se com este nosso hábito demasiadamente humano de negar o inexorável, de controlar o incontrolável, e, não conseguindo, de esconder-se em cápsulas virtuais, em psicotrópicos de ultima geração, em imagens. Um homem que talvez tenha sempre existido pode começar enfim a surgir. Um homem capaz de viver a dor e a alegria de ser mortal, singular, sozinho, comum. Um homem capaz de gritar sua dor impossível.


Um homem capaz de cantar. Um homem capaz de viver.
Viviane Mosé, 2005

9 comentários:

  1. querida eliete que mensagem profunda e forte minha amiga,um texto maravilhoso verdadeiro,parabens
    vim desejar uma linda semana a voce com muito carinho b js marlene

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  2. Um dos textos mais lindos que já li, só podia ser no seu agradável e aconchegante blog. Parabéns à autora, acho que ela disse tudo, nem nos cabe comentar muito, pois já está completo. Li no texto de capa do Pe Marcelo, u mtrecho que diz: "Estão coisificando as pessoas". Infelizmente. Beijos, amiga e um abraaaaaço bem apertado.

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  3. A mensagem é forte, o ser humano sempre será uma intensa surpresa de vida...beijos de bom dia pra ti amiga.

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  4. Eliete...que texto espetacular! Porque não se publica isso na primeira página dos jornais de todo o planeta?? Quem sabe ainda desse tempo para mudar e viver com mais leveza.
    PARABÉNS.
    Bjos
    ;)

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  5. Olá,Eliete!!

    Nossa!Que texto denso!!!Ótimo para refletir.
    Li uma vez que negando nossos defeito(medos, etc...) só o tornamos maior e mais forte!E é verdade.
    Beijos minha querida!!
    *Quero agradecer a atenção que me deste, tirando minhas dúvidas sobre psicologia,me ajudou a decidir!Prestei vestibular para Letras e passei!!!Obrigada!!!!

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  6. Um texto notadamente profundo e intenso, e um tanto pessimista.

    Eu canto e vivo, nesta vida!! creio que cada um faz a sua vida, o seu destino, o seu trajeto. Depende da forma de ser e de sentir de cada um. Devemos sim, sempre, procurar ver o lado bom e positivo da vida, sem deixar-nos ser arrastados pelas nuvens da ilusão humana.

    Beijos, Eliete!

    ps. Não te esqueci, não. Gosto imensamente de voce e de seu blog. Aprendo muito aqui. Só estou na correria do trabalho de fim de ano. Logo passa. beijos

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  7. Belíssimo texto e incontestável uma síntese de como caminha a humanidade e dentro dela o homem. Aceitar a si mesmo é o maior milagre do mundo esse é o meu pensamento. Parabéns Eliete por trazer textos que engrandecem a alma e lapidam o caráter para quem está na jornada chamada de humildade.

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  8. Ótima reflexão sobre a condição humana, seus anseios e suas dores, suas indagações e seus temores...
    Um abraço

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  9. Vim agradecer o teu carinho que é sempre especial.Lindo e faz bem! beijos,chica

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Apontadora de Idéias

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"A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu. (...) Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas... Mas não posso explicar a mim mesma." (Lewis Carroll)

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